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Estado de Minas

Livres do cárcere dos antigos manicômios, ex-pacientes reconquistam cidadania

Neste ano, quando se comemoram três décadas do Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil, série do EM mostra a rotina de pessoas que trocaram os tratamentos impessoais na antiga meca dos hospitais psiquiátricos por moradias terapêuticas


postado em 07/05/2017 00:12 / atualizado em 08/05/2017 11:32

Germânio da Silva exibe com alegria o certificado de conclusão de curso que lhe permitiu fazer o Enem, diante da janela por onde entra a brisa da liberdade: 'No hospital, se a gente sorria eles perguntavam por quê'(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Germânio da Silva exibe com alegria o certificado de conclusão de curso que lhe permitiu fazer o Enem, diante da janela por onde entra a brisa da liberdade: 'No hospital, se a gente sorria eles perguntavam por quê' (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

Barbacena –
Germânio Eustáquio da Silva, de 60 anos, não se cansa de exibir os papéis com as notas do último Enem, que o faz sonhar com a faculdade de comércio exterior. Marisa Cristina, de 39, abre sorriso tímido ao contar a rotina diária entre casa e trabalho, onde cumpre jornada de oito horas como faxineira. De óculos escuros e gestos largos, Bento Márcio da Silva, de 52, enumera com a ajuda dos dedos as cidades que visitou em excursão com os amigos da igreja. Além da visível felicidade, os três têm algo em comum, imperceptível para quem cruza com eles pelas ruas ou na fila da padaria: até pouco tempo estavam internados – em históricos que somavam anos ou até décadas – em hospitais psiquiátricos de Barbacena, na Zona da Mata mineira, que já foi conhecida pejorativamente como Cidade dos Loucos e que hoje reclama o título Cidade das Rosas.

Com histórias como as deles, o Estado de Minas apresenta a partir de hoje a série “Além dos Muros”, que retrata pacientes que saíram da internação de longo prazo e hoje vivem em sociedade graças a iniciativas da rede substitutiva, implantadas na continuidade da reforma psiquiátrica, na década de 1990. São pacientes que, antes da Lei 10.216, de 2001 – chamada de Lei Paulo Delgado, que definiu a extinção progressiva de manicômios no país –, viviam confinados, muitas vezes em condições subumanas, como no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), o outrora famigerado Hospital Colônia, onde morreram mais de 60 mil pessoas até o fim dos anos 1970.

Em 2017 comemoram-se 30 anos do Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil. Embora a batalha pelos direitos de pessoas com sofrimento mental seja anterior, foi em 1987 que houve o 1º Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, em Bauru (SP), que definiu 18 de maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.

Com pouco mais de 135 mil habitantes, Barbacena, na Zona da Mata, foi epicentro da discussão sobre reforma psiquiátrica no Brasil, depois que uma série de denúncias expôs barbaridades no Hospital Colônia, que iam de banhos gelados a choques até o macabro mercado de vendas de cadáveres para universidades. As práticas ganharam repercussão internacional e levaram psiquiatras renomados, como o italiano Franco Basaglia, a comparar os pátios abarrotados aos campos de concentração nazista.

Por ser uma cidade serrana de clima agradável, favorecida por forças políticas da época – que acreditavam que a chegada de um hospital traria modernidade para o município, então postulante a capital do estado –, Barbacena se tornou principal referência para pacientes psiquiátricos no país a partir de 1903, com a abertura do Hospital Colônia. Até 1949, outras cinco instituições abririam os portões com o mesmo fim, entre elas a Casa de Saúde Xavier (1913), o Sanatório Barbacena (1918) e a Casa de Saúde São Sebastião (1949) – que teve entre seus pacientes, entre 1955 e 1959, o ex-jogador do Botafogo e da Seleção Brasileira Heleno de Freitas, atormentado pela sífilis terciária.

Ao longo de oito décadas, Barbacena recebeu pacientes do Brasil inteiro, muitas vezes sem critérios claros para internação. Muitos chegavam à cidade pela linha férrea, em vagões lotados chamados de “trens de doido”, como no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, de Guimarães Rosa, que, quando médico, teve curta passagem pela cidade. A existência dos hospitais, obviamente, ditou o curso da história do município, que ainda hoje carrega forte estigma, embora iniciativas – como a exploração do slogan Cidade das Rosas – busquem abrandar décadas de sofrimento entre muros.

Hoje, Barbacena vive momento crucial na luta antimanicomial. Governo municipal e estadual discutem a saída dos últimos 146 pacientes do CHPB – 151 contando os cinco que estão há mais de um ano na Unidade de Internação de Agudos e que dependem de ordens judiciais. Para que a cidade, depois de mais de um século, não tenha mais pacientes em internação de longo prazo, é necessária a abertura de 15 a 20 residências terapêuticas. “É uma oportunidade histórica de devolver a esses pacientes, que estão aqui há 40, 50, 60 anos, o direito de viver em sociedade”, ressalta a psicóloga Hildaléa Dias, gerente assistencial do CHPB.

Embora ainda dependa de novas unidades, Barbacena já é a cidade com o maior número de residências terapêuticas per capita do país. São hoje 31 casas em 14 bairros – média de uma para cada 4,3 mil habitantes –, que abrigam 220 moradores. A título de comparação, Belo Horizonte, com 2,2 milhões de habitantes, tem 32 residências terapêuticas, que são uma estratégia de desinstitucionalização criada para abrigar pacientes psiquiátricos que perderam o vínculo social e familiar – muito em razão do tempo em que ficaram internados.

 

Confira o especial completo no link: https://www.em.com.br/especiais/alemdosmuros/ 


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