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Estado de Minas O CRACK COMO ELE É

Veja como estão hoje os usuários de crack acompanhados pelo EM em 2013

Dois anos depois de o EM mostrar o drama de 10 usuários da droga, reportagem mostra que apenas quatro conseguiram se livrar do vício, três não foram localizados e um morreu


postado em 24/08/2015 11:00 / atualizado em 24/08/2015 11:10

Wagner do Nascimento, com a mulher Ângela Chaves, e o filho Yago: vida feliz depois do vício(foto: Sandra Kiefer/EM/DA Press)
Wagner do Nascimento, com a mulher Ângela Chaves, e o filho Yago: vida feliz depois do vício (foto: Sandra Kiefer/EM/DA Press)

“Meu filho morreu, meu filho morreu...”, repetia sem parar ao celular a feirante Edith dos Anjos Fernandes, de 56 anos, como se não quisesse acreditar na realidade do “Crack como ele é”, série de reportagens publicada pelo Estado de Minas. Na última sexta-feira, a mãe havia acabado de reconhecer no Instituto Médico-Legal (IML) de Belo Horizonte a foto do corpo do ex-jardineiro Cleneílson dos Anjos Fernandes, de 35. Dos 10 usuários de crack acompanhados durante seis meses pelo jornal, quatro estão atualmente sóbrios, dois ainda não conseguiram se recuperar totalmente, outros três não foram localizados e um não resistiu.


Quem continuou na trajetória da pedra está agora no fundo do poço ou morto. Entre os poucos que largaram o crack, sobrevive o empresário Wagner do Nascimento, de 35 anos, incentivado pela funcionária pública Ângela Chaves, que nunca desistiu de salvar o marido das drogas. “Já consigo dormir à noite sabendo que ele vai chegar em casa todos os dias, voltando do trabalho. Antes, nunca sabia aonde estava Waguinho”, comemora a mulher, feliz da vida em frente da nova casa em Santa Luzia, na Grande BH. “Em um ano longe do crack, consegui dinheiro para construir a minha casa. Para a droga, sempre faltava grana. Em 11 anos de dependência do crack, poderia ter 11 casas como essa”, lamenta o ex-adicto, que agora leva os filhos mais novos Yago e Maria Eduarda para passear nos fins de semana, principalmente no Parque Guanabara. Para comprovar a veracidade da informação, Waguinho saca do bolso a carteira, exibindo o passaporte fixo do parque de diversões. “Quer saber? Com a sobriedade, a vida de gente só melhora”, diz o dono de banca de jornais e revistas, feliz da vida.

Aos 35 anos, a ex-diarista Sandra Maria da Silva concorda com o colega de adicção Waguinho, embora não o conheça pessoalmente. Na época da série de matérias, ela estava há um ano sem drogas, prestes a receber o chaveiro comemorativo dos Narcóticos Anônimos. Após dois anos de sobriedade, completos em junho, Sandra acredita que não irá voltar ao caminho da dependência química. “Se eu der recaída, quem vai cuidar da minha família?”, pergunta a guerreira, que também conseguiu resgatar das ruas a irmã caçula, Alessandra. Já a irmã mais velha, Vanessa, que tinha entregue dois dos cinco filhos para o Juizado da Infância e da Juventude, está grávida pela sétima vez. Vive perambulando pela Lagoinha, voltando em casa apenas para dormir.

Além de tentar ajudar as duas irmãs, Sandra conseguiu também ajudar Vander Lúcia Lourença Souza, de 46 anos, vizinha dela no Beco das Crianças, localizado na invasão de terra, próximo ao Bairro Cachoeirinha. No ambiente propício para uso de drogas, com muita pobreza e controle total dos traficantes, Vanda havia ‘perdido’ as duas filhas dela para o crack. Ambas conseguiram se livrar da pedra e ela própria, a mãe, se absteve de usar cocaína. “É trouxa quem pensa que uma pedra vai tirar da depressão e acabar com a tristeza. Só afunda mais”, diz a mãe. “Já na primeira tragada no beréu (baseado de maconha batizado com crack), senti um gosto diferente e a boca adormeceu. Fui traída pelo meu amigo, que me ofereceu um baseado. Só via a pedra pela frente”, conta a jovem T., com um bebê de quatro meses. “Já estava tentando parar e, quando fiquei grávida, parei de vez”, completa ela, que se converteu à religião evangélica, assim como Vanda. Pouco antes, a jovem havia levado uma surra de corrente nas costas, em função de dívidas de droga.

Carlos Ângelo Becalli, hoje com 29 anos, é outro que permanece longe do crack. Desde a publicação da reportagem, há dois anos, ele segue a vida tentando criar uma família e seguir trabalhando. Hoje, procura um emprego depois de um ano em uma fábrica de pães. “Me dei muito bem por lá, mas como eu trabalhava em uma câmara fria, não estava me sentindo bem e pedi para sair”, conta ele, ao encontrar a reportagem do EM por acaso na Praça Sete. Orgulhoso, conta que já tem um filho de sete meses, com a atual mulher. “Meu filho nasceu com síndrome de Down e é a maior benção que eu tenho nessa vida”, afirma.

Voltando ao caso anterior, desde março a mãe estava desesperada sem ter notícias sobre o paradeiro do filho, rebatizado como Cleiton na região da Lagoinha, que ainda permanece como a maior cena de uso de crack da capital, desde a publicação da reportagem, há dois anos. Depois de procurar em hospitais, clínicas de recuperação e delegacias, Edith aceitou a ideia de buscar por Cleiton, pai de duas crianças de 10 e 14 anos, no último lugar em uma mãe espera encontrar um filho. Segundo consta, o homem havia morrido em 31 de maio e já estava sepultado há três meses.

“Pra mim, foi uma tragédia. A gente nunca acredita na morte de um filho. Sempre tinha esperança de que ele iria conseguir decidir o que era melhor para a vida dele. Nunca quis interná-lo à força, porque achava que poderia não ser bom”, conta Edith, que teve negada a chance de chorar pelo filho no caixão. Ela se encontrava periodicamente com Cleiton, que ia visitar a mãe na feira de artesanato da avenida Afonso Pena, onde aproveitava para filar cachorro-quentes e acarajés. Comia três ou quatro de uma só vez, depois de passar dias sem comer e sem dormir, invernado na fissura pela pedra. “Quando encontro com minha mãe, é uma lagoa”, dizia ele, derramando lágrimas em uma das tentativas de internação feitas pela mãe, acompanhada pela reportagem do EM.

Lagoinha O cenário da Lagoinha permanece praticamente inalterado desde então, se não fosse pelo assassinato a facadas de um dos mais antigos moradores da cracolândia. Dia e noite, homens, mulheres e até grávidas podem ser vistos até hoje com seus cachimbos acesos, fritando a pedra e vagando a esmo nas imediações da Pedreira Prado Lopes, maior centro fornecedor de crack da cidade. “Vocês não sabem não? Mataram ele (Cleiton) a facadas há uns dois, três meses. Ele estava tentando vender pedra perto da rodoviária. Lá não é permitido”, explicou um ex-colega de Cleiton, maltrapilho e com a barba por fazer.

Exatamente desse mesmo jeito, Cleiton havia sido personagem da reportagem sobre o crack, em 2013. Para piorar, estava coberto de branco pelos colegas, que jogaram tinta nele para vingar por uma ‘parada’ malfeita da droga. “Preste atenção: não sou inteligente. Eu sou fraco. Ouviu? Sou fraco”, admitiu Cleiton, que estava sendo chamado de ‘fantasma’ entre os craqueiros. Por oito vezes, Edith havia tentado internar o filho em uma clínica de recuperação. A última vez foi em fevereiro passado, um mês antes de morrer, com vaga mais uma vez garantida pelo Culto dos Resgatados, da Igreja Batista da Lagoinha. “Ele chegou a entrar no carro com a gente e seguir para a clínica, mas desistiu ao passar pelo centro da cidade. Ficou agressivo e quase pulou do veículo em movimento”, contou a mãe, em prantos (colaborou Guilherme Paranaiba).

SÉRIE PREMIADA
Publicada entre 12 e 15 de agosto de 2013, a série de reportagens “O crack como ele é” acompanhou a vida de 10 usuários de crack durante seis meses em Belo Horizonte, mostrando a devastação provocada pelo uso da pedra no dependente químico e nos familiares. Recebeu o primeiro lugar no Prêmio de Jornalismo Promotor de Justiça Chico Lins pela Associação Mineira do Ministério Público (AMMP).


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