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Estado de Minas

Mulheres que dizem ter alma masculina revelam as dificuldades da transformação

Em Belo Horizonte, grupo evita se expor por medo de preconceito e se reúne em clube secreto


postado em 20/10/2013 06:00 / atualizado em 20/10/2013 07:27

O encontro foi marcado na porta da própria casa, em um bairro de classe média da Região Oeste de Belo Horizonte. Meia hora antes, o carro da reportagem estaciona em frente ao número indicado. A rua está vazia. No prédio, os entregadores de um caminhão de mudança descarregam mobília. Vida que segue. Nem parece que daquele mesmo portão está para surgir uma quase celebridade. O tempo parece se arrastar. Um dos dois assessores liga. Confirma que a figura já está descendo, “desculpe a demora”. De longe, vem vindo um belo rapaz. Com seu gingado masculino, braços musculosos e jeans abaixo da cueca, chama a atenção por onde passa. Tem pose de artista. Entra no banco de trás do carro e se acomoda com desleixo, como se fosse seu. Dá um aperto de mão forte, viril. Depois, vira-se para o motorista e se apresenta, com timbre de voz grave e sorriso maroto: “Oi, sou a Tereza Brant. Tudo bem?”

Esse perfeito menino nasceu mulher, há 20 anos. Depois de aparecer em capas de revista e programas de tevê, passou a ser reconhecida nas ruas, especialmente por adolescentes. Graças à fama instantânea, Tereza Brant trouxe visibilidade para um mundo que é mais difícil e complicado do que parece. Chamados de homens trans, eles são a última categoria a “sair do armário” dentro do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis). Eles se definem como pessoas que nasceram com a mente masculina no corpo de uma mulher. Em Belo Horizonte, os homens (e mulheres) trans estão reunidos no clube secreto da internet FTM (Female to Male, que significa “de mulher para homem”). Criado em junho, registra 67 transexuais. O grupo pode ser até maior, mas evita se expor publicamente. A maioria quer distância de holofotes, flashes de câmeras e até da luz do sol. Prefere sair à noite. “Antes de concluir minha transformação, tinha pavor de sair na rua e de ser reconhecido como mulher. Andava encurvado, tentando esconder os peitos. Agora é que estou corrigindo minha postura”, explica o artista plástico Paulo, de 26 anos, que faz o estilo cult, usando calça marrom xadrez, tênis despojado e costeletas bem delineadas. Fundador do FTM em BH, é o único do grupo que já operou os seios.

Filha única de uma instrumentarista cirúrgica e de um funcionário aposentado da Caixa Econômica Federal de BH, Tereza Brant sempre desejou ser famosa, mas só foi “descoberta” quando assumiu a aparência de homem. “Sempre quis ser eu mesma, sem me encaixar em caixas classificatórias de gênero. Sou feliz assim. Sou Tereza”, revela ela, que há 10 meses iniciou uma terapia com hormônios e, este mês, deve fazer a cirurgia de retirada das mamas. Entretanto, quer continuar a ser chamada pelo nome de batismo.

Tereza Brant abriu as portas para um mundo até então pouco conhecido(foto: Marcos Michelin/EM/DA Press)
Tereza Brant abriu as portas para um mundo até então pouco conhecido (foto: Marcos Michelin/EM/DA Press)
SONHO Mais radicais do que Tereza Brant, os meninos fazem de tudo para passar despercebidos na condição de transexuais. O objetivo maior é ser reconhecido 100% homem, sonho cultivado intimamente por muitos deles, desde a infância. Os garotos não saem de casa sem os packers (próteses de pênis de borracha, flácidas, introduzidas na cueca para dar volume na calça). Na parte de cima, enquanto não conseguem operar as mamas, apertam os seios sob faixas apertadas até cortar a pele. “Desde os 4 anos faço xixi em pé, mesmo com a urina escorrendo pelas pernas”, revela Lucas*, rosto marcado por espinhas e seios ocultos debaixo de três camisas de malha e de um agasalho esportivo. “Nunca tiro o casaco, por mais quente que esteja”, diz.

“Tereza Brant pode até se sentir mulher, mas eu não. Sou um homem”, esbraveja o barman Luan*, de 23, gerente de uma drinqueria badalada na noite de BH. Ele conta já ter sofrido discriminação de parentes, de heterossexuais e até de gays, para quem virar trans homem representa uma espécie de capricho de lésbicas. “Só eu sei o que passei. Custei a conseguir o respeito da minha mãe, da família da minha esposa, dos patrões, dos clientes do bar”, completa. Com o auxílio de testosterona, Luan enterrou no passado a Luana, a garotinha meiga da cidade do interior. Deixou transbordar de dentro da alma um verdadeiro ogro: irritadiço, coberto de tatuagens e piercings. “Lembro como se fosse hoje do dia mais feliz da minha infância. Foi quando vesti um terno, que era do meu irmão. Eu tinha 7 anos.”

ESCONDIDOS Eles não se parecem com lésbicas e nem mesmo com mulheres masculinizadas. À primeira vista, passam por rapazes, com direito a barba, topete e bigode. Por viverem às escondidas ou amparados por identidades ocultas, depois da transformação hormonal poderiam ser confundidos com o filho da vizinha ou com cabeleireiro da esquina. Nesse último caso, não se trata de força de expressão. Medeiros* é dono de um pequeno salão de beleza na Zona Sul de Belo Horizonte.

Alto e sarado, como se diz na gíria das academias, costuma ser cantado pelas clientes do salão, que nem sequer desconfiam estar paquerando uma mulher. “Nunca dei liberdade, pois sabia do potencial de fofoca que isso poderia gerar”, explica ele, que há um ano e meio começou a namorar a recepcionista da empresa, uma jovem de 22 anos. A família da moça, católica fervorosa, acredita piamente que a menina está comprometida com um rapaz comum. * Nomes fictícios

Cirurgia pelo SUS

Para alguns estudiosos, os transexuais masculinos e femininos sofrem de transtorno de identidade de gênero ou de disforia de gênero, que é o persistente desejo de se identificar com o sexo oposto. Para outra corrente de pensamento, porém, não é correto caracterizar como patologia ou distúrbio mental, assim como foi feito nos anos 1990 com os homossexuais.

Desde 2008, o Sistema Único de Saúde (SUS) garante a cirurgia de mudança de sexo, denominada processo transexualizador, a partir dos 18 anos. Até hoje, 192 pessoas entraram com pedido de realização dessa cirurgia pelo SUS. Em março, o Conselho Federal de Medicina (CFM) passou a recomendar a aplicação da terapia de hormônios a partir dos 12 anos, quando começam os sinais da puberdade. O tratamento inicial bloquearia justamente a puberdade de gênero de nascimento.

Discretos, quase invisíveis

A invisibilidade dos homens trans no país chamou a atenção de pesquisadores dos departamentos de Antropologia e de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O estudo, inédito, tenta desde 2011 mapear o perfil dos homens trans. Esbarra, porém, no comportamento arredio dos transexuais, que evitam comparecer às reuniões. Dos três encontros marcados até agora, o grau de comparecimento foi de apenas seis entrevistados no projeto Transexualidades e Saúde no Brasil: entre a invisibilidade e a demanda por políticas públicas para homens trans.

“Nosso intuito era conhecer o perfil desses meninos. Não existem dados concretos sobre o tema no Brasil e muitas pessoas desconhecem essa realidade. Eles sofrem preconceito, rejeição das famílias e acesso precário à saúde”, afirma a antropóloga Érica Renata de Souza. Coordenadora da pesquisa pela UFMG, ela se viu obrigada a restringir o campo de estudos a Belo Horizonte, São Paulo e Campinas.

PAPÉIS INVERTIDOS Nascido como menina, Paulo divide o apartamento alugado na Zona Sul da cidade com a namorada, do Pará, a modelo transexual Gisele*, batizada originalmente como Gilson, de 20 anos. Ele era ela e ela era ele. Na prática, o casal inverteu os papéis. “Nunca vi o p... de Gisele. Ela morre de vergonha. Nós queremos fazer a cirurgia de mudança de sexo na Alemanha, onde o procedimento está mais avançado. No Brasil, ainda é experimental”, diz Paulo, de mãos dadas com a namorada.

Apesar de ter mãos pequenas e delicadas, ele é quem entrelaça os dedos da namorada, que tenta disfarçar a sua com muitos anéis e unhas pintadas de vermelho vivo. Ao contrário dos transexuais femininos, que podem ser às vezes identificados pela saliência na garganta, o popular gogó, ou pelo tamanho dos pés e das mãos, os homens trans tornam-se muito parecidos externamente com os nascidos nessa condição biológica. A partir de seis meses de injeção de hormônios, que deve ser tomada pelo resto da vida, ganham voz grossa, pelos no corpo e força muscular. “Em nós, meninos, o único porém são as mãos, que não crescem, nem tomando T (testosterona). Essa é uma característica difícil de mudar”, ri Paulo.

O depoimento de uma mãe


Luciana Paes - Designer de joias, mãe de Luan*


“Nossa relação sempre foi de muita cumplicidade. Ele sempre foi uma criança de opinião, sabia o que queria, era curioso. Negociávamos tudo, desde o castigo até as recompensas. Tudo foi acontecendo de forma natural, mãe sempre sabe, sempre percebe... As brincadeiras foram ficando cada vez mais masculinas, os amiguinhos da escola eram na maioria meninos. Vivia descabelado e suado. E minha relação com ele, por causa disso, nunca mudou. Eu o deixava escolher suas roupas, seus tênis, bonés, brinquedos, carrinhos, se vestia como ele gostava.

Dentro de mim, sinceramente, não mudou nada. Mas não havíamos falado sobre essas diferenças entre ele e as outras menininhas da escola. A hora da verdade ocorreu quando ele tinha 13 anos e pediu dinheiro para cortar o cabelo, que, na época, era longo. Uma hora depois, chegou em casa com a cabeça raspada. Fiquei muda, era a hora de conversar. Ele me disse que gostava de meninas, que estava apaixonado, e eu agi de forma natural. Conversamos muito, na verdade sempre soube, só foi a hora de botar um “rótulo” nisso (e eu ODEIO rótulos).

Meu maior medo era a reação do mundo lá fora. Tudo foi feito com muita responsabilidade, estávamos com ele para o que der e vier, e isso afastou muita gente maldosa, entende? Essa decisão do Luan não me veio como uma bomba que explode na cara, veio como uma nova etapa a seguir. Aos 19 anos, ele estava passando por uma fase terrível da vida dele. Sentia-se homem, mas não conseguia se ver como um homem quando olhava no espelho. Ele não era lésbica, ele era homem... mas como? Difícil entender, né?

Ele queria culpar alguém, algo, Deus, sei lá, por ter um corpo feminino. Foi complicado. Um dia, sem hora marcada, ele me disse que iria tomar hormônios e ficar com aparência masculina, mudar seu nome, documentos, e faria algumas cirurgias. Creio que ele tenha pensado que eu iria surtar, mas não. Fiquei feliz de ele ter ‘se encontrado’ . Mas pedi que ele fizesse isso tudo com acompanhamento médico, porque eu queria estar junto dele. E assim foi. Mais uma etapa que começamos juntos. Naquele dia, nasceu uma pessoa incrível, que você conheceu e que veio pra ser aceito como é, e pra ser feliz.”


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