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Estado de Minas

Justiça pressiona para garantir registro de paternidade

Judiciário intervém nos atritos que privam crianças do registro paterno. Resistência nem sempre parte do homem e mulher também é pressionada a respeitar direito do filho


postado em 11/02/2013 00:12 / atualizado em 11/02/2013 07:30

Sandra Kiefer

Thiago Cunha com a mãe, Gisely, que acabou assumindo o status de irmã: produção independente, curiosidade e rebeldia(foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
Thiago Cunha com a mãe, Gisely, que acabou assumindo o status de irmã: produção independente, curiosidade e rebeldia (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)

A Justiça decidiu contrariar o antigo dito popular e cada vez mais mete a colher em briga de marido e mulher. Mas por uma boa causa: o objetivo é proteger milhões de crianças do país de uma vida sem o registro de paternidade. Por meio de programas de reconhecimento, como o Pai Presente, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, e o mutirão Direito a Ter Pai, da Defensoria Pública de Belo Horizonte, que ocorreu em dezembro, 4,3 mil crianças e adolescentes já sabem dizer o nome de seus pais. Com isso, passam a ter acesso a sobrenome, além de direito a pensão alimentícia e herança, como vem mostrando desde ontem o Estado de Minas na série Pelo nome do pai. Mas, até chegar a esse estágio, há um longo caminho cheio de obstáculos e eles não partem apenas dos homens, mas podem vir também das mulheres e até dos familiares delas.

Diante disso, além de pressionar os pais a fazer o devido reconhecimento, o Judiciário cobra nova postura das mães, intimadas a esquecer o rancor contra o parceiro e a respeitar o direito dos filhos, custe o que custar. Para a defensora pública Ana Cláudia Leroy, coordenadora da Vara de Família e Sucessões da capital, o simples fato de registrar o nome do pai na certidão pode mudar o futuro da criança e do jovem, além de ser um direito de todo filho. “O registro da paternidade promove a aproximação da criança com o pai, possibilitando a reconstrução de vínculos afetivos”, defende.

Mas os casos de reencontro ainda são minoria. Os relatos de quem passa a vida sem a figura paterna variam de filhos de mulheres abandonadas pelos namorados, que desaparecem ao saber da gravidez, às chamadas “produções independentes”: mães solteiras que por motivos diversos omitem a identidade do parceiro.

Foi o que ocorreu com o jovem Thiago Cunha, hoje com 19 anos. Na infância, o menino teve de conviver com a estrutura familiar imposta sem aviso prévio. Além da avó, foi criado pela mãe, a quem considera mais como uma irmã. Gisely Cunha, hoje aos 35 anos, engravidou aos 14. Mais tarde, sempre acompanhou o filho nas festas. Nunca disse quem era o pai. “A única vez em que perguntei para minha avó, ela ficou supernervosa. Não perguntei mais. Prefiro pensar que foi uma produção independente”, desconversa, afirmando que não se incomoda com o fato de não conhecer o pai.

Há nove meses, Thiago a perdeu a avó materna, candidata ao posto de figura paterna substituta. Rosângela de Castilho Cunha morreu aos 52 anos, vítima de câncer. A partir da perda da avó, sua melhor referência de limite, Thiago continuou a produzir um universo próprio fora dos padrões convencionais. O jovem promoter, ex-sócio de uma boate GLS de Belo Horizonte, aposta alto na rotina de noitadas. Quer trazer para a capital mineira o agito de outras metrópoles. A ideia de viver sem restrições começou desde cedo: “Sempre fui meio rebelde. Minha avó e minha mãe nunca me impediram de fazer nada. Desde os 6 anos, ficava solto na rua, conversando com os amigos”, conta. Para ele, o fato de ter uma família fora dos padrões fez com que aprendesse a lidar com uma mãe solteira e uma avó que ditava as regras. Não muito rígidas, é verdade.

SEGREDO DE FAMÍLIA Mas o discurso da aceitação não é a regra. Para a jovem P., de 24 anos, moradora do Bairro Padre Eustáquio, Região Noroeste de BH, conviver com a dúvida desde a infância pesa nos ombros. Filha de mãe solteira, seus questionamentos começaram cedo, durante as comemorações do Dia dos Pais na escola. As respostas, porém, nunca vieram. “Ninguém nunca tocou nesse assunto comigo. É segredo na família. Um dia, coloquei minha mãe contra a parede e a interroguei sobre meu pai. Ela desconversou e contou apenas o primeiro nome dele”, relata. “Passaram várias loucuras pela minha cabeça. Por que ninguém me fala nada? Será que meu pai era um bandido? Já pensou se eu começar a namorar alguém e descobrir que ele é meu irmão? É horrível viver assim”, desabafa ela, que interrompeu o curso universitário e evita namorar firme.

Angélica agora tem o nome do pai, que sempre tentou reconhecê-la, na identidade(foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)
Angélica agora tem o nome do pai, que sempre tentou reconhecê-la, na identidade (foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)


Laços reatados em campanhas

Apesar de significar um avanço, o resultado das campanhas de reconhecimento de paternidade em Minas ainda é ínfimo. Com 4,3 mil casos resolvidos, a iniciativa representa não mais que 10% das 43,7 mil crianças com pai anônimo identificadas nas fichas escolares apenas na capital mineira. O esforço torna-se relevante, porém, quando se conhece cada uma das histórias de resgate escondidas atrás das estatísticas.

Essas descrições comprovam que nem sempre o pai biológico é quem foge do reconhecimento. Há casos em que a iniciativa parte do homem, mas esbarra em resistência do lado materno. Foi o que ocorreu com o motorista de ônibus Jorge Lúcio de Barros, de 55 anos. Ele revela ter tentado por diversas vezes, sem sucesso, assumir tanto o relacionamento com a mãe de Angélica, quanto a própria paternidade.

Ele tinha 19 anos quando se envolveu com uma jovem da vizinhança, seis anos mais velha. Quando ela ficou grávida, em plenos anos 1970, Jorge Lúcio foi tachado de moleque pelos familiares da namorada. Chegou a ser ameaçado de morte se voltasse a se aproximar da moça, que acabou se casando com outro, com quem teve mais quatro filhos.

Passados 10 anos, quando a mulher morreu, vítima de aneurisma cerebral, Jorge Lúcio tentou nova aproximação com a filha, então com 11 anos. A investida foi novamente rejeitada pelos avós maternos. Com a morte deles, Angélica foi morar com uma tia em outro bairro e perdeu o contato com o pai.

Só agora, aos 36 anos, Angélica buscou ela própria o reconhecimento. Procurou Jorge Lúcio, que cedeu a ela o sobrenome Barros, incorporado à identidade. Angélica Evangelista Campos Barros ganhou também três irmãs por parte de pai. Passou a ter sete irmãos. Nessa aproximação tardia, ela já participou inclusive de um almoço de domingo na casa do pai, sendo bem recebida pela “madrasta”.

Antes do mutirão, Angélica era sempre questionada em relação à ausência do nome do pai na identidade. “Da última vez, desisti de uma vaga de emprego em uma agência, porque a atendente, ao perceber o nome em branco no documento, disse que a pessoa que tem registro sem o nome paterno é considerada bastarda. Levantei na hora e fui embora”, revela ela, que concluiu o ensino médio, fez curso de brigadista de incêndio e de segurança, e acalenta o sonho de entrar para a polícia.

Aos 55 anos, Jorge Lúcio de Barros sente a necessidade de provar que nunca foi moleque. Conta que tem casa própria, carro e, embora esteja aposentado, não parou de trabalhar. “A família da mãe da Angélica é que tinha o rei na barriga!” Agora, ele não esconde a felicidade de ter reatado os laços com a filha, que quando era nova ia sozinha, a pé, visitar o pai, que morava no mesmo bairro. “Sabia que ela me chama de pai?”, comenta, orgulhoso. E completa: “Gostava demais da mãe dela e, apesar de não ter me envolvido muito, é como se eu a tivesse criado”.


Bem distante da responsabilidade

Durante o mutirão da Defensoria Pública, aparecem denúncias de homens que imigram, passando até a viver ilegalmente em países como os Estados Unidos, como forma de escapar da responsabilidade como pais, inclusive do pagamento de pensão. Os relatos de dificuldades no reconhecimento se sucedem. “No dia de ganhar neném (18 de novembro), liguei para o pai e avisei: ‘Seu filho vai nascer e vai se chamar Lorenzzo. Sempre quis ter um filho com esse nome e você não tem o direito de dar palpite’”, relata a auxiliar de enfermagem Ana Paula Brun Rodrigues, de 28 anos, moradora do Bairro Jaraguá, na Região da Pampulha, em Belo Horizonte. Ela conta que tinha um relacionamento estável, até o dia em que engravidou. O namorado, além de exigir o DNA, mudou-se para trabalhar em um parque aquático em Fortaleza (CE).

Ana Paula com o pequeno Lorenzzo: 'Não sou eu quem perde nessa história'(foto: Tereza Correia/EM/D.A Press)
Ana Paula com o pequeno Lorenzzo: 'Não sou eu quem perde nessa história' (foto: Tereza Correia/EM/D.A Press)


“Não sou eu quem perde nessa história. Ele é que está perdendo o primeiro sorriso do filho, os primeiros passos e a primeira palavra, que na certa vai ser mamãe”, desabafa Ana Paula, emocionada, depois de passar 14 dias com o filho no CTI neonatal. Para manter o pai informado, ela envia fotos demonstrando as fases do crescimento do bebê via celular. Diante da omissão do pai, a enfermeira vai ajuizar pedido de pagamento de pensão alimentícia, com base no resultado positivo do teste de DNA. “Não quero um centavo dele, mas meu filho tem direito. Quero que ele tenha uma boa educação e estude no Colégio Militar”, completa ela, que demorou a desconfiar que estava grávida, pois usava método anticoncepcional. Só percebeu ao tirar ultrassom antes de operar a vesícula, pois sentia muitas dores.

“Tive minha filha na hora certa, mas com a pessoa errada”, define Valéria do Socorro. Perto dos 30 anos, ela conta que engravidou por descuido. Depois, se mudou com os pais para a capital, trabalha e agora está casada. Nos últimos dois anos, o pai da criança não visitou a menina, apesar de morar em cidade próxima. A mãe conta que chegou a levar a filha até ele, mas a recepção não foi boa. “Ela mostrou as unhas pintadas de esmalte e pediu a bênção dele, mas ele nem olhou. Ela ficou arrasada”, desabafa a mãe, que, depois daquele dia, tomou a decisão de exigir o reconhecimento da paternidade. “Ele não podia ter feito isso com ela. Vai ter de dar o nome a ela e pagar pensão. Nem que seja R$ 20, mas vai ter de ser todo mês.”


REGISTRE QUE O FILHO É SEU
Passo a passo até o reconhecimento paterno
1) A mãe de um menor de idade ou o próprio filho, ao atingir a maioridade, procura o Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em BH
2) O tribunal notifica o pai para que compareça em audiência, podendo ele reconhecer espontaneamente o filho ou pedir o exame de DNA, de forma gratuita
3) Se o reconhecimento for espontâneo, no mesmo dia será enviado o termo de reconhecimento ao Cartório de Registro Civil. No prazo de 30 dias, a nova certidão será entregue
4) Caso o pai não se apresente em audiência, poderá ser proposta ação de investigação de paternidade contra ele, podendo ser cumulada com pedido de pensão alimentícia
Fonte: Defensoria Pública de Minas Gerais


ONTEM NO EM
A primeira reportagem da série Pelo nome do pai, publicada na edição de ontem, mostrou que o país convive com quase 6 milhões de pessoas registradas apenas em nome das mães, e que a cada ano 700 mil bebês engrossam essa lista. Em Belo Horizonte, iniciativa pioneira do Judiciário conseguiu preencher a lacuna nas certidões de mais de 4 mil crianças, 54% da demanda recebida no ano passado.
 


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