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Estado de Minas

Conheça a incrível saga do Sete Orelhas, lendário vingador mineiro

Para vingar irmão esfolado vivo, justiceiro fez caçada de seis anos pelos sertões mineiros, eliminou assassinos e enfileirou orelhas em cordão. História pode virar Patrimônio Imaterial


postado em 28/01/2012 06:00 / atualizado em 28/01/2012 06:57

O vingador Januário Garcia Leal ganhou monumento em São Bento Abade, no Sul de Minas(foto: Fotos: Lincoln Daniel/Prefeitura de São Bento Abade/Divulgação)
O vingador Januário Garcia Leal ganhou monumento em São Bento Abade, no Sul de Minas (foto: Fotos: Lincoln Daniel/Prefeitura de São Bento Abade/Divulgação)


Num tempo em que Minas era capitania e a Justiça estava a léguas de distância dos arraiais – quando estava! –, o bárbaro assassinato de um fazendeiro desencadeou a morte igualmente sangrenta de sete irmãos. Amarrado a uma figueira, João Garcia Leal, de 43 anos, foi despelado vivo, sem a menor chance de defesa, depois da disputa com um vizinho pela demarcação de terras. Sedento de vingança e sem apoio das autoridades coloniais, o irmão da vítima, Januário Garcia Leal (1761 –1808), considerado um homem bom e trabalhador, jurou vingança e seguiu os criminosos território mineiro afora, eliminando um a um. Para finalizar o ato, cortava a orelha do homem “justiçado”, salgava e enfiava num cordão. Não demorou muito para ser conhecido como Sete Orelhas. A história, que completa 210 anos e já foi tema de inúmeras obras literárias, teria se passado onde é hoje uma propriedade particular em São Bento Abade, a 256 quilômetros de Belo Horizonte, no Sul do estado. O local é tombado pelo município e a saga do justiceiro está a caminho de ganhar registro como patrimônio imaterial.

Mais do que trazer à tona a violência nos rincões do Brasil colonial, terras sem lei e gente para fazê-la ser cumprida, a saga do personagem trata da ocupação de Minas no século 18. Os antepassados de Januário emigraram do Arquipélago dos Açores, pertencente a Portugal, e se instalaram primeiro na capitania e em São Paulo. Em seu livro Jurisdição dos capitães – A história de Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, e seu bando, o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda, integrante também do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, conta que as raízes, formação étnica e costumes da maioria do povo das Gerais estão nos Açores.

“Ao açoriano cabe a primazia de ter sido o nosso colonizador, o nosso desbravador, foi aquele bravo que fixou as nossas fronteiras, matou e morreu pela preservação da nossa integridade territorial”, diz Marcos Paulo, destacando outra característica dos ilhéus que os distinguiam dos portugueses, mais preocupados com o brilho do ouro. “Os açorianos cultuavam tradições, reveladas nas festas do Espírito Santo, Divino e folia de reis. Tinham espírito festeiro e transmitiram isso aos descendentes, deixando como legado as rodas de fiar, os teares domésticos para se fazer colchas de lã, o carro de boi mineiro e os doces caseiros.

Mas toda essa alegria não foi suficiente para aplacar a ira de Januário, homem branco, possuidor de vários bens e pertencente a uma das famílias mais tradicionais do Sul de Minas, ao descobrir a morte do irmão – de acordo com os relatos históricos, ele teria visto, do alto de um morro, a trágica cena de João Garcia tendo a pele retirada, ainda vivo, pelos filhos do fazendeiro Francisco Silva. Abandonou a mulher e o filho, Higino Garcia Leal, e começou a sua caçada pelos sertões, que duraria seis anos.

Ocupante do posto de capitão de ordenança – organização da população civil de caráter militar, para defesa local em caso de ataque de inimigo –, Januário adotou como primeira providência apelar para as autoridades, em São João del-Rei, sede da comarca do Rio das Mortes. Sem sucesso, devido à inércia do Poder Judiciário colonial, decidiu fazer justiça com as próprias mãos, seguindo a Lei de Talião: “Morte aos matadores”. “Assim, chegou um tempo, em Minas, que se podia falar na existência de duas justiças: a do Estado português, lenta, burocrática e ineficaz; e a dos Garcia, célere, imperativa e implacável”, diz o autor do livro.

Olho por olho

A história do Sete Orelhas passou de geração em geração e, na infância em Andrelândia, no Sul de Minas, o futuro promotor de Justiça a escutou muitas vezes, contada pelos avós. Adulto, Marcos Paulo decidiu estudá-la a fundo, afinal ele também descende dos Garcia. “Pesquisei a genealogia em São João del-Rei e encontrei também documentos em Portugal e no Arquivo Público Mineiro, descobrindo que aquilo que parecia lenda era realidade.” Um exemplo: “Em 1803, uma moradora da Freguesia de Campo Belo, então subordinada à Vila de São Bento do Tamanduá, hoje Itapecerica (MG), fez representação ao governo português contra o Sete Orelhas. No documento, ela cita ‘uma fiada de orelhas’ usada pelo justiceiro”.

O promotor localizou em Lages (SC) o auto de corpo de delito e o inventário de Januário, nascido em Jacuí (MG). Depois de anos de caça aos assassinos, ele seguiu para a cidade catarinense, vivendo como comerciante sob proteção de parentes, já que a colônia açoriana era grande naquela região. Curiosamente, morreu com uma pancada na altura da orelha, depois que a madeira de um curral o acertou. “Não há dúvida de que Januário passou a infância ouvindo de seus pais as façanhas do parente Bartolomeu Bueno do Prado, que mandou ao governo de Minas, segundo alguns historiadores, 3,9 mil pares de orelhas de negros fugidos. Se isso foi verdade, teria influenciado, de alguma maneira, a formação de Januário”, diz Marcos Paulo.

O justiceiro não matou sozinho os sete irmãos, tendo a companhia do irmão Salvador Garcia Leal e do primo Mateus Luís Garcia. De início, o bando matou três dos algozes de João Garcia Leal, quando se preparavam para fugir. Os restantes estavam em localidades diferentes e o último se fazia de “santo” perto de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha. Sete Orelhas lhe deu a chance de viver: mandou que ele caminhasse 100 passos e avisou que atiraria; se não acertasse, poderia ir embora, do contrário… Não deu outra e, finalmente, o capitão cumpriu o prometido.

A coroa portuguesa não deu trégua e pôs no encalço do bando o temido Fernando Vasconcelos Parada e Souza, o mesmo encarregado de perseguir os inconfidentes. “Ele não conseguiu pegar Januário, mas Salvador foi preso. Já o primo Mateus conseguiu fugir”. O promotor traz a história para os dias atuais, lembrando que “se não tivermos um eficaz aparelho estatal de repressão à criminalidade, as pessoas que buscarem e não encontrarem justiça vão fazê-la com as próprias mãos”.


SAIBA MAIS: ÁRVORE DO SUPLÍCIO

A chamada Figueira do Tira-Couro, na qual o fazendeiro João Garcia Leal teria sido despelado vivo, resiste até hoje numa propriedade particular em São Bento Abade, no Sul de Minas, a 256 quilômetros de Belo Horizonte. Em 21 de abril de 1990, ao ser promulgada, a Lei Orgânica municipal declarou a importância histórica do monumento, com a respectiva área de 1 mil metros quadrados. Em 12 de abril de 2004 foi a vez de o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural tombar a Figueira do Tira-Couro. Segundo o secretário municipal de Cultura, Lincoln Daniel de Souza, está sendo feito atualmente o levantamento de toda a trajetória de Januário Garcia Leal, com base em livros, documentos e inventário, visando o registro como patrimônio imaterial ou reconhecimento de manifestações culturais. A expectativa é de que o resgate valorize a história local e fomente o turismo. “Muita gente diz que Januário foi apenas um assassino, mas, para grande parte da comunidade, era um justiceiro”, diz o secretário, lembrando que na Avenida Miguel Nasser, principal do município, há um monumento em homenagem ao Sete Orelhas.

 

 

LINHA DO TEMPO
Século 18 –Início da formação, no Brasil, do clã dos Garcia, com a emigração dos antepassados de Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, vindos do Arquipélago dos Açores
1802 –Em 21 de janeiro, Januário recebe a carta patente de capitão de ordenança, em Alfenas, antigo Arraial de São José e Nossa Senhora das Dores
1802 – O fazendeiro João Garcia Leal, irmão do capitão Januário, é cruelmente assassinado por sete irmãos, sendo despelado vivo, amarrado a uma figueira, em São Bento Abade, no Sul de Minas
1802 –Januário Garcia Leal jura vingança e, diante da inércia da Justiça colonial, parte em busca dos sete assassinos do irmão. Durante seis anos, o capitão parte em busca dos assassinos, matando-os um a um
1803 – Moradora da Freguesia de Campo Belo, então subordinada à Vila de São Bento do Tamanduá, hoje Itapecerica (MG), faz representação ao governo português contra o Sete Orelhas
1808 –Januário Garcia, então com 47 anos e vivendo como comerciante, morre em Lages (SC)
Década de 1820 – Grande parte dos Garcia Leal segue para as capitanias de Mato Grosso e Goiás, passando a povoá-las
1990 –Lei Orgânica de São Bento Abade (MG) determina o tombamento da Figueira do Tira-couro, onde morreu João Garcia
2004 –Em 12 de abril, Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de São Bento Abade tomba a Figueira do Tira-couro, com área de 1 mil metros quadrados, em propriedade particular
 


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