
“Dona desta casa, venha nos abrir a porta, venha nos abrir a porta…” Com esse pedido, na forma de música e acompanhamento de acordeom, pandeiro e viola, as pastorinhas começam hoje, véspera de Natal, a sua peregrinação pelas casas, igrejas, capelas, enfim, onde houver um presépio montado para festejar o nascimento do Menino Jesus. Dançando e fazendo saudações diante da manjedoura e das imagens, surgem os personagens alegres, como estrela, caboclo, anjos, ciganas, borboleta e reis magos. Em Minas, a tradição começou no século 18, trazida pelos portugueses, e foi ganhando força e espaço, tanto que, atualmente, há cerca de 4,5 mil grupos distribuídos pelos 853 municípios, diz a presidente da Federação das Folias de Reis de Minas Gerais, a folclorista Dadá Diniz. Em cada região, os moradores fazem resgate das letras, passos, arranjos e instrumentos, sempre num clima de entusiasmo.
A história dessa manifestação popular que encanta e emociona os brasileiros tem suas origens nos autos pastoris portugueses da Idade Média, associados à “alegria franciscana”. É que tudo começou na região italiana da Úmbria, com a montagem do primeiro presépio por São Francisco de Assis (1182-1223). Ao cantar e dançar diante da gruta, ele dava início ao costume que, quase 800 anos depois, se torna um cenário de beleza, poesia e delicadeza. Na noite de quinta-feira, Sabará, que comemora 300 anos de elevação a Vila Real, aplaudiu, com antecedência – e ainda sem o Menino Jesus na manjedoura –, o grupo formado em 2006 com 22 crianças de 5 a 12 anos, com a apresentação no prédio da prefeitura. Até dia 6, Dia de Reis, a turma tem programação extensa a cumprir nos bairros e ruas do Centro Histórico, sempre às 19h.
Roupas coloridas, saias rodadas, fitas nos instrumentos musicais e chapéu elegante com lantejoulas. Pastorinhas e pastores fazem a festa nas casas, que sempre os recebem de portas abertas e fazem agrados com refrigerantes, salgadinhos, balas e biscoitos. A coordenadora do Grupo de Pastorinhas de Sabará, Roberta Maria Pinto Paes, está animada com a retomada dessa tradição da cidade. “Temos notícias dos grupos lá no século 19, então, devemos manter viva a nossa cultura no ciclo natalino. Eu mesma copiei as músicas do caderno emprestado por uma senhora”, afirma. No início, conta, as apresentações eram feitas nas igrejas católicas, mas, com o tempo, elas foram incorporadas pela comunidade e as pastorinhas começaram a sair às ruas e visitar as famílias.
Em Couto de Magalhães de Minas, no Vale do Jequitinhonha, a 330 quilômetros de Belo Horizonte, gerações vão se sucedendo no Grupo de Pastorinhas do Deserto, formado na década de 1920. Dona Inês Bernardina Luz, a dona Dina, de 81 anos, coordenadora do grupo, se recorda que, quando era criança, fazia parte e gostava muito. “Naquela época, as pastorinhas já existiam havia muito tempo, fazendo apresentações na Igreja do Bom Jesus do Matosinhos e depois nas casas.”
Sangue novo
Segundo a folclorista Dadá Diniz, as pastorinhas são uma “variante” da folia de reis, que reúne um maior número de figuras. “Todas essas manifestações da religiosidade popular representam um patrimônio imaterial”, explica. Na capital, há muitos grupos em plena atividade, e ela cita a Folia de Reis Dona Guidinha formado em 1980 no Bairro Caiçara, na Região na Região Noroeste de BH.
Outro grupo que “arrasta” muita gente, devido às suas coreografias, melodias e bem ensaiado Auto de Natal, é o da Ordem Templária da Cruz de Santo Antônio de Pádua, do Bairro Jaraguá, na Região da Pampulha, em parceria com grupo da terceira idade Cantinho da Amizade, de Santa Luzia, na região metropolitana. As figuras de Maria, José e Jesus, pastorinhas, ciganas, estrelas, palhaços, representando os soldados de Herodes, e de Gaspar, Belchior e Baltazar saúdam o Menino Jesus e garantem aplausos. As apresentações vão até 2 de fevereiro, adianta o “rei perpétuo” da Ordem Templária e presidente do Centro das Tradições do Rosário de Minas Gerais, o advogado Manoel Fonseca dos Reis, que, no cortejo pelas ruas do bairro, toca acordeom. No Bairro Coração Eucarístico, na Região Noroeste de BH, o grupo de pastorinhas dá uma parada este ano, para se reestruturar e voltar com fôlego no ano que vem, diz a coordenadora Thaïs Camisassa Dornas, que toca acordeão e violão na Pastoral da Música. Entusiasma, ela aplaude a união de cultura popular e personagens do Evangelho.
Em Santa Luzia, na Grande BH, as pastorinhas sempre tiveram público cativo, embora o mais antigo grupo da cidade, o fundado em 1952, no Bairro São Geraldo, pelo militar Cipriano Batista Rodrigues, já falecido, tenha encerrado a sua trajetória. A filha de Cipriano, Cleusa da Conceição Batista Braz, de 66 anos, se alegra com as lembranças e diz que gostaria de reviver os seus tempos de cigana, com a saia rodada, tranças feitas de fibra de pita, um planta do seu quintal, e muitos colares, brincos e pulseiras. “Comecei com 7 sete anos e foi assim durante décadas”, conta Cleusa, que tem todas as canções na ponta da língua. “Antes a gente passava a noite indo às casas, era uma felicidade. Eram dezenas de visitas”, diz com uma ponta de emoção. As dificuldades, hoje, decorrem da falta de três elementos importantes: de entusiasmo da garotada, de transporte e de apoio. Em Taquaraçu de Baixo, na zona rural de Santa Luzia, está em atividades há 30 anos o grupo Pastorinhas de São Francisco, coordenado pelo casal Benvindo Pinto Filho e Maria das Graças Batista Pinto.
Festa nos presépios
Saudação
“Boa noite, meus senhores todos.
Boa noite, senhoras também.
Somos pastoras, pastorinhas belas,
e alegremente vamos a Belém” .
Menino Jesus
Pastorinhas e pastores,
Eu não sei se já sabeis,
Que nasceu entre as palhinhas,
Jesus Cristo, rei dos reis.
Borboleta
“Borboleta bonitinha,
sai fora do arrozal.
Vem adorar o Deus Menino,
que hoje é noite de Natal”.
Cigana
“Sou cigana do Egito,
nas montanhas de Belém
vim tirar a minha esmola,
cada um dai o que tem.
Deus lhe pague a vossa esmola,
dada de boa vontade.
Lá no céu terás o pago
da Santíssima Trindade”
Olê lê lê, pastoras,
São horas meu senhor,
São horas divinas,
São horas de amor (bis)
Ó meus senhores todos
Prestai bem atenção (bis)
Porque a ciganinha,
ela não dá troco não (bis)
Despedida
Pastoras, vamos embora,
que a madrugada já vem.
Vamos visitar as cabanas,
que lá não ficou ninguém.
LINHA DO TEMPO
Século 18 –Tradição das pastorinhas chega ao Brasil trazida pelos portugueses
Século 19 – Em Ouro Preto, ex- Vila Rica, começam a se formar os grupos de pastorinhas
Década de 1920 – Criado o Grupo de Pastorinhas do Deserto, em Couto de Magalhães de Minas, no Vale do Jequitinhonha
1952 – Em Santa Luzia, Cipriano Batista Rodrigues funda o grupo de pastorinhas do Bairro São Geraldo
Década de 1960 –Em Ouro Preto, grupo de pastorinhas do Padre Faria começa a visitar as casas
1980 – Em dezembro, é criado o Folia de Reis Dona Guidinha, no Bairro Caiçara, Região Noroeste de BH
1988 –Criada, em BH, a Ordem dos Templários da Cruz de Santo Antônio de Pádua, que apresenta autos de Natal, com as pastorinhas
2006 – Fundado o Grupo de Pastorinhas de Sabará, com 22 crianças, e já reconhecido como entidade
