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Estado de Minas entrevista/Rosângela Teixeira - 64 anos, Médica e professora

Vida dedicada à profissão

Mineira é referência em doenças hepáticas e pesquisas de melhores tratamentos para pacientes


14/02/2021 04:00

(foto: Mariana Faria/divulgação)
(foto: Mariana Faria/divulgação)


Dedicação com profissionalismo, amor e compaixão. Assim é pautada a vida de Rosângela Teixeira, médica da equipe de Gastrohepatologia do Hospital Felício Rocho, professora da Faculdade de Medicina da UFMG e pesquisadora. Ela entrou para a medicina por tomar gosto pela biologia desde o ensino médio e, posteriormente, pelo exemplo de ética, dedicação e competência de seu irmão, atuante na profissão. Especializou-se em doenças do fígado, área delicada, com manifestações silenciosas e de tratamento difícil. Gosta de desafios, sem se preocupar com o excesso de trabalho. Na assistência aos pacientes com doenças hepáticas no Hospital das Clínicas, nunca recusou pacientes e coleciona uma lista infindável daqueles que se curaram ou conseguiram estabilizar sua hepatopatia.
 
Onde nasceu?
Nasci em Pará de Minas, apesar de a cidade natal da minha família ser Pitangui. Meu pai trabalhou no Banco do Brasil e as mudanças eram frequentes, por isso fui a única a nascer em Pará de Minas. Minha mudança para Belo Horizonte foi para continuar os estudos.

Tem irmãos?
Sim. Sou a nona filha de uma família  numerosa.

Como foi sua infância? O que gostava de fazer e brincar?
Minha infância foi em Pará de Minas, cidade tranquila, onde tudo se fazia a pé e se compartilhava a vida com vizinhos, que eram como irmãos. Gostava muito de jogar vôlei, esporte que pratiquei muitos anos nos colégios. Apesar da atividade coletiva, acredito que sempre fui uma pessoa mais tímida. Era muito estudiosa, diziam que eu era “caxias”, hoje seria a “nerd”. Sempre adorei estudar, é um prazer como qualquer outra diversão; aprender é uma atividade lúdica.

Tem filhos?
Tenho uma filha que, diferentemente da mãe, preferiu atuar na área de ciências humanas e sociais, sem deixar de lado o gosto pelos estudos.

Sempre quis ser médica?
A medicina foi a profissão a que eu mais visava, embora arquitetura também fosse de meu interesse.

Quem foi a grande influência para a escolha da sua profissão?
Meus professores de biologia nas escolas em Pará de Minas, em particular a querida professora Elizabete Melo, e meu irmão médico nefrologista e professor da Universidade de Uberlândia, Hélio Teixeira, que construiu uma carreira brilhante.

Como foi sua preparação profissional?
Eu me formei em medicina pela UFMG, em 1981. Em seguida, fiz residência em Clínica Médica no Hospital das Clínicas da UFMG, mestrado e doutorado em medicina tropical na UFMG, pós-doutorado em hepatologia no Royal Free Hospital, Londres e, outro pós-doutorado em hepatologia no Icahn Scool of Medicine do Mount Sinai Hospital, em Nova York, ambos como bolsista da Capes/Brasil.

Por que escolheu a hepatologia?
Fiz mestrado e doutorado em complicações do fígado causadas pela esquistossomose mansoni, orientada pelos professores José Roberto Lambertucci (UFMG) e o querido  Paulo Marcos Zech Coelho (Fiocruz), ambos a quem devo grande gratidão. Após concluir a pós-graduação na Faculdade de Medicina da UFMG, pude me aprofundar mais em hepatologia, particularmente em hepatite C, durante os pós-doutorados fora do Brasil.

O que a levou a ser pesquisadora?
A universidade se sustenta em três funções: ensino, pesquisa e extensão. Em tese, a vida de um professor universitário implica desenvolvimento dessas três atividades e, no nosso caso, professores de medicina, somos também médicos, pois exercemos assistência, seja nas funções acima, seja no exercício da especialidade. Assim, professores de medicina sempre estão junto a estudantes e pacientes e, como médicos e professores, atendemos pacientes, ensinamos e sempre aprendemos. O exercício da docência é, por si, um grande aprendizado.

Quando se tornou professora da Federal e entrou para o Hospital das Clínicas?
Em 1990. Como professora da Faculdade de Medicina, exercemos grande parte da docência no Hospital das Clínicas e seus anexos ambulatoriais.

A esquistossomose está extinta?
Não. Mas sabemos que desde o início do século 20, com a contribuição decisiva de médicos e cientistas brasileiros, particularmente da Fiocruz/Minas, como Naftale Katz e  Paulo Marcos Zech Coelho, conhece-se muito mais sobre essa doença potencialmente letal que tem relação com a pobreza e, consequentemente, com condições sanitárias inadequadas. De acordo com Katz, em recente publicação, tem-se observado redução da esquistossomose no Brasil por causa da eliminação dos focos de transmissão em zonas endêmicas e da melhoria, nas últimas décadas, do abastecimento de água e esgotamento sanitário sobretudo no Nordeste do Brasil e em Minas Gerais. Faz muito tempo que não trabalho com esquistossomose, mas nossa prática revela que raramente temos pacientes com doenças hepáticas únicas. Assim, é frequente o fígado ser bombardeado por mais de um fator, como o alcoolismo, as infecções virais crônicas e a esquistossomose, por exemplo.

Quais os maiores desafios com relação a doenças de fígado?
São muitos desafios. A hepatologia é, ainda, uma especialidade menos conhecida que as tradicionais. No entanto, as doenças do fígado, em razão do crescente aumento e da complexidade, exige profissionais muito dedicados. Hoje, a doença hepática gordurosa do fígado (DHGNA, termo usado para descrever o acúmulo de gordura no fígado por causa da obesidade), atinge cerca de 20% da população dos países ocidentais. É uma doença complexa e desafiadora, que, aos poucos, vai substituindo as hepatites virais como causa de cirrose e câncer do fígado. O tratamento da DHGNA é complexo, pois implica mudanças radicais nos hábitos de vida, e sabemos como isso é difícil. Além disso, temos também alta prevalência de alcoolismo e de hepatites virais crônicas B e C que também contribuem para a maioria dos casos de cirrose hepática. As doenças hepáticas, por serem silenciosas e apresentar poucos sintomas, muitas vezes não são diagnosticadas precocemente e podem evoluir, lentamente, para a cirrose e até câncer do fígado.

Existe alguma maneira de prevenir essas doenças com exames de check ups?
As hepatopatias não se desenvolvem com a idade, mas com os fatores de risco. A obesidade é a grande vilã, está associada ao diabetes tipo 2 e está sendo tratada como epidemia, pois cerca de 30% da população tem sobrepeso ou mesmo obesidade. O excesso de gordura acumula nas vísceras causa estresse oxidativo, lesa as células de vários órgãos, como o fígado, podendo resultar em inflamação do fígado, conhecida como esteatohepatite, que vem se tornando causa muito importante de câncer de fígado e cirrose. Por outro lado, o excesso de ingestão de bebidas alcoólicas também é um sério problema. Muitos pacientes, quando procuram o médico, menosprezam a questão e afirmam beber socialmente, só uma latinha de cerveja, “uma cervejinha” ou uma taça de vinho. Com uma resposta dessas, nenhum médico vai pensar em cirrose. Quando o paciente chega com cirrose, é comum negar ou subestimar a quantidade que bebe e, quando está com acompanhante, ser desmentido.

É possível retroagir a gordura no fígado?
Sim, mas o tratamento principal consiste na dieta e na atividade física. Essa é a doença do século devido ao sedentarismo, excesso de fast-food e comidas processadas. Todas esstas questões, somadas ao alcoolismo, agravam a esteatose. As pessoas precisam comer e beber com responsabilidade, com foco sempre na saúde. Quanto ao álcool, como é uma substância socialmente aceita, e até incentivada, é preciso ficar atento para que progressivamente não aumente a quantidade ingerida, como forma de hábito. Se realmente necessário, o importante é beber para celebrar bons momentos, e não como vício ou de forma constante. Como o tratamento depende de mudança de estilo de vida, e a maioria dessas pessoas não o faz, os laboratórios estão investindo pesado para descobrir um medicamento que reduza a gordura no fígado.

A hepatite é um problema que atinge muita gente. Como se precaver?
Hepatite é um termo genérico que significa inflamação do fígado. Portanto, é inespecífico e, por si só, não nos revela qual é a sua etiologia, ou seja, o fator causal da doença. Sabemos que a hepatite pode ser causada por doenças metabólicas, pelo alcoolismo, por diversos vírus, pelo uso de drogas tóxicas para o fígado, pela obesidade, diabetes, doenças autoimunes, genéticas, entre outras causas. Assim, é fundamental para o hepatologista investigar a causa. É comum existir associação de várias causas, como a hepatite viral causada pelos vírus B ou C e o alcoolismo. A prevenção depende de cada fator que pode desencadear a hepatite.

Quais as diferenças entre os tipos de hepatite?
Há pelo menos cinco vírus que têm tropismo direto pelo fígado, que são chamados de vírus A, B, C, D e E. A hepatite A é conhecida como hepatite infecciosa, com transmissão fecal-oral de relação direta com condições sanitárias precárias. A maioria das pessoas que adquirem a infecção curam-se espontaneamente, mas em alguns casos a hepatite pode evoluir para a forma fulminante. Não há tratamento específico. A hepatite B tem como principal via de transmissão as relações sexuais desprotegidas com pessoas portadoras do vírus B. A infecção ocorre também por via materno-fetal. Em crianças, há alta taxa de doença crônica, enquanto em adultos a cronificação é mais baixa. Trata-se de doença que pode ser grave, evoluir para a cirrose e, ainda, para o câncer do fígado mesmo nas pessoas que não têm doença hepática avançada. Como as demais hepatites crônicas, ela é também silenciosa. É importante dizer que há prevenção através da vacinação contra a hepatite B, que está disponível no SUS. A hepatite C crônica é também assintomática e, atualmente, a principal via de transmissão é através do contato do sangue de uma pessoa infectada com o sangue de pessoa sadia. Importante ressaltar que não se pega o vírus C nas doações de sangue e que, atualmente, as transfusões de sangue são seguras. Dessa forma, a principal contaminação está entre usuários de drogas injetáveis que compartilham agulhas, além do compartilhamento de outros materiais infectados, como alicates de cutícula e outros instrumentos não esterilizados corretamente, ou não descartáveis. A hepatite C crônica hoje é curável com drogas disponíveis no SUS. No entanto, por ser assintomática, é comum a evolução para a cirrose e suas complicações. A testagem da hepatite C pode ser feita nas unidades básicas de saúde e todas as pessoas devem ser testadas pelo menos uma vez na vida. A hepatite D (ou Delta) é comum no Brasil somente na Bacia Amazônica e, como o vírus Delta depende do vírus B para sobreviver, a vacina da hepatite B previne a hepatite Delta. Já a hepatite E tem sido foco de mais atenção. Sua transmissão ocorre sobretudo a partir da ingestão de carne suína malcozida. Pode ser doença grave em pacientes com deficiência imunitária, como em indivíduos que fazem uso de drogas imunossupressoras ou após transplantes, e, nessas condições, pode se tornar crônica, levar à cirrose e até a morte. O diagnóstico é ainda muito difícil no nosso meio. O tratamento deve ser orientado por especialistas.

O tratamento era muito sofrido para a B e C. Teve algum avanço?
Sim. O tratamento da hepatite B teve grande avanço e, hoje, temos drogas que podem ser usadas uma vez por dia, estão disponíveis no SUS e apresentam alta resistência contra mutações desde que sejam usadas adequadamente. As indicações de tratamento devem ser analisadas caso a caso, porque nem todas as pessoas infectadas precisam ser tratadas. A hepatite B não tem cura, apenas controle da replicação do vírus. Assim, o melhor remédio continua sendo a prevenção através da vacina. Notável mesmo foi o avanço que ocorreu no tratamento da hepatite C nos últimos 20 anos. Trata-se de uma das maiores conquistas recentes da medicina. Partimos de tratamentos difíceis de serem tolerados, como na era dos interferons, complexos, injetáveis, demorados, com diversos efeitos colaterais e que não garantiam cura, para os modernos tratamentos, completamente orais, de curta duração, que curam praticamente 100% das pessoas infectadas e que estão disponíveis no SUS em todo o Brasil. No entanto, curar a infecção é diferente de curar a doença. Assim, podemos dizer que a doença tem cura quando é diagnosticada antes da instalação da cirrose. Se existe a cirrose, a cura da infecção previne, mas não evita completamente o câncer de fígado. Assim, não é raro que pacientes curados da infecção desenvolvam câncer do fígado por causa da cirrose.

E o câncer de fígado? Existe possibilidade de cura, ou só transplante?
O câncer primário do fígado, conhecido como carcinoma hepatocelular, representa o quinto câncer mais comum em todo o mundo e a neoplasia mais frequente do fígado, cuja incidência encontra-se em contínuo aumento. Na maioria dos casos, ocorre em fígado cirrótico. A despeito da recomendação de rastreio semestral do tumor pela ultrassonografia de abdome superior em pacientes cirróticos, o que contribui para o diagnóstico mais precoce, na maioria dos pacientes o diagnóstico é tardio, quando as opções terapêuticas e de cura são limitadas. Portanto, é fundamental o diagnóstico precoce para que o paciente tenha maiores chances de se curar.

Pessoas com problemas hepáticos têm reações mais fortes em caso de COVID?
A COVID-19, maior pandemia de toda ordem dos últimos anos, seja sanitária, social, econômica, moral e política, entre outras, chegou até nós como uma doença muito recente não descrita antes na literatura médica, que tem demandado um imenso aprendizado universal, pesquisas e ações apressadas de forma a proporcionar menor impacto e letalidade nas populações, visto tratar-se de doença sistêmica de múltiplas faces. O fígado pode ser acometido na COVID-19, visto que as células do órgão têm receptores para o coronavírus, embora em proporção muito menor do que no pulmão, por exemplo. Assim, o fígado pode ser lesado durante a infecção pelo coronavírus no contexto do acometimento de vários outros órgãos, seja pela resposta imune provocada pelo vírus, pela falta de oxigenação das células hepáticas, pela automedicação inadequada ou mesmo pelo uso de drogas necessárias para o tratamento da infecção. Dessa forma, é comum que pacientes com COVID-19 apresentem alterações nas provas de função hepática. No entanto, na maioria dos casos, não ocorre hepatite grave e o fígado se recupera espontaneamente. O grande risco é quando a COVID-19 acomete pacientes cirróticos e, nesses casos, aumenta muito o risco de morte.

O HC atende apenas SUS, mesmo assim, vários pacientes de posses recorrem a você por ter se tornado referência na área. Nunca recebeu convite de hospitais particulares?
Nossa função no Hospital das Clínicas é prestar o melhor atendimento aos que precisam da nossa assistência, independentemente de classe social ou econômica. Somos médicos e professores dedicados à saúde pública, que é direito de todos. Recentemente, em razão de minha aposentadoria na Faculdade de Medicina, deixei de ter dedicação exclusiva, mas mantenho funções na coordenação do Ambulatório de Hepatites Virais do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da UFMG, um dos centros de referência em hepatites virais de MG, e, também, atividades como docente do curso de pós-graduação em ciências aplicadas à saúde do adulto, da Faculdade de Medicina da UFMG. Mais recentemente, fui incorporada ao corpo clínico do Serviço de Gastroenterologia e Hepatologia do Hospital Felício Rocho, de Belo Horizonte, um novo desafio, onde me dedicarei às atividades assistenciais e científicas nesse excelente serviço de referência em hepatologia em Minas Gerais. 


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