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Estado de Minas entrevista/Estela Netto - 40 anos, arquiteta

Corajosa e empreendedora

Gaúcha de nascimento, mineira de coração, a profissional trabalha sem fronteiras


31/01/2021 04:00

(foto: escritório Estela Netto/divulgação)
(foto: escritório Estela Netto/divulgação)

 
Se alguém pedir para definir a arquiteta Estela Netto, em uma primeira impressão a descrição será de uma mulher bonita, elegante, meiga e delicada. Realmente, ela é tudo isso, mas por trás dessa aparência quase frágil está uma mulher extremamente forte, corajosa, trabalhadora, que sabe o que quer e completamente fora do padrão dito “normal”. Nascida em Porto alegre, mudou-se para Belo Horizonte aos 20 anos, ainda na faculdade, e mesmo antes de se formar já tinha clientes. Atualmente, tem escritório em um andar em Lourdes, com 10 arquitetos, e tem projetos em três estados.
 
Como é sua família?
Meu pai é violinista, tocava na TV Rio na época da televisão ao vivo. Tivemos uma educação bastante cultural. Nossas viagens sempre tiveram a ver com arte, com visitas a museus, arquitetura. Somos muito urbanos, sem nenhuma vivência de interior. Meu pai é carioca e minha mãe gaúcha. Eu estudava balé e queria ser bailarina. Tenho duas irmãs mais velhas do que eu, uma com 15 anos a mais que eu e outra com 10 anos a mais. Sou caçula temporona.

Como foi sua adolescência?
Em 1996, queria fazer intercambio e meu pai disse que eu deveria escolher um país onde pudesse ter uma experiência antropológica, com uma experiência de vida mais rica. Eles são muito mais modernos do que eu. Fui morar em Havana, por um ano. Estudava balé desde pequena, e por isso arrumei o intercâmbio com a Escola Nacional de Artes de Havana, que na época bombava, tanto no balé quanto no cinema. Tinha estudantes do mundo inteiro. Fui estudar história da arte, filosofia e balé.

Como foi essa experiência?
Um país totalmente anacrônico, fechadíssimo na época. Mas foi muito interessante para mim. Não tinha nenhuma dificuldade do ponto de vista financeiro, somos uma família de classe média, mas lá o dólar valia muito. Tinha os supermercados que vendiam produtos em dólar. Mas quando cheguei, era uma mocinha brasileira, de 15 anos, mimada como todas. Fiquei em um albergue de estudantes internacionais de balé. No meu quarto tinham uma francesa e uma espanhola, mas não tinha banho. Eu perguntei como tomava banho e uma me disse que emprestaria o seu balde. “Você desce, pega água no poço, sobre, esquenta com ebulidor e toma banho”. E eu, uma patricinha, sem nenhuma vivência de interior, fiquei sem saber como era isso. Claro que liguei para minha mãe. Ligar para a família só era possível uma vez por semana, porque tinha que ligar de hotel, era proibido ligar de casa. Contei para ela que não tinha banho e eles se desespe- raram.

E como passou um ano nessas condições?
Comecei a ver como poderia alugar uma casa. Fiquei no albergue um mês, o tempo necessário para descobrir onde tinha casas para alugar e como alugar. Consegui uma casa linda, art déco, que era de uma embaixada, em um bairro maravilhoso de Havana. As casas caindo aos pedaços, obviamente, e foi aí que a arquitetura entrou na minha vida.

Você reformou a casa?
Não. Morei naquela casa caindo, mas tinha estrutura com banheiro, onde se podia tomar banho. Mas ela era da década de 1920, linda. Apaixonei-me por aquela arquitetura. A casa era muito animada. O pessoal do cinema e do balé iam lá direto. Tinha muito brasileiro fazendo medicina. A gente se encontrava na minha casa. Para minha formação, foi muito importante, inclusive do ponto de vista político, para entender o que dá certo e o que não dá. Mas muito mais do ponto de vista social e cultural. A partir dessa minha experiência, comecei a olhar para a arquitetura de uma maneira diferente.

Como foi ver a população local de Cuba, que vive diferentemente dos turistas?
Eu era muito jovem, mas ter a liberdade cerceada é a pior das torturas. Seja de direita ou de esquerda, qualquer ditadura é de uma crueldade horrorosa. Eu me deparei com isso. E aquela miséria deles – estou falando de 1996, não sei como está hoje – era inacreditável, não ter sabonete, pasta de dente; por outro lado, tinham coisas que a maioria da nossa população não tem. Por exemplo, tinham saúde pública. Tenho um olhar treinado desde criança para ver sempre o que há de bom nas coisas. Então eu via que estavam miseráveis, as casas estavam caindo, não têm liberdade, são controlados o tempo todo nas escolas e no trabalho, não podem pensar diferentemente do partido; mas meu foco nunca foi nisso. Eu percebia, não negava, mas conversava com a faxineira do Teatro Garcia Lorca, onde eu estudava, ela sabia de Tchaikovsky, Beethoven, assistia à La traviata, Lago do cisne. Isso é um ganho também. O pesado é que eles têm acesso a estudo, e isso dá a eles conhecimento de toda essa falta de liberdade, por isso acho que sofrem mais.

Quando voltou pensou em fazer arquitetura?
Foi. Amadureci muito nesse ano em Havana, mas vi que não seria bailarina e comecei a flertar com a arquitetura. Queria uma profissão que pudesse me dar dignidade de trabalhar e viver do meu trabalho, e que não fosse burocrática, que tivesse algo de lúdico e artístico. Optei pela arquitetura e acredito que dei muita sorte. Fui muito abençoada com essa escolha, que combina muito comigo e com o que penso de mundo.

O que você vê de mais importante na sua profissão?
O que acho mais legal na arquitetura é tocar o outro. Meu trabalho final de graduação (TFG) foi um estudo sobre interiores de casas de comunidades, lá no Aglomerado da Ser- ra. Como as pessoas se apropriavam desse espaço.

Você fez faculdade de arquitetura em Belo Horizonte?
Comecei em Porto Alegre, mas me casei muito jovem, meu marido foi transferido para Belo Horizonte quando estava no meio do curso, e vim para a PUC-MG, onde continuei e concluí o curso.

Vamos voltar ao seu trabalho.
O trabalho era para ver como as pessoas da comunidade usavam seu espaço interno. Engraçado, porque as pessoas de fora têm um olhar achando que eu só trabalho com mercado de luxo. Na verdade, me interesso por como o outro vive, esse é o meu barato. Como você vive? Como você pensa o espaço, como se apropria dele? Um antropólogo francês muito bacana, Gaston Bachelard, escreveu um livro excelente chamado Poética do espaço. Como a gente se projeta no espaço? Por que você vive do seu jeito e eu do meu? Por que você gosta de claro e eu de escuro? Você de pequeno e eu de grande? Essas coisas contam muito sobre nós, sobre nossa personalidade, sobre a maneira como vemos o mundo. Isso é que eu acho que é o grande barato da arquitetura. E nesse TFG, lembro-me de que um dos arquitetos da banca, que era da UFMG, falou que o meu trabalho “poderia estar na sociologia, por isso te dou zero, porque, para mim, ele não poderia ser apresentado na arquitetura. Mas como sua escola permitiu, de dou 10”. Achei legal, porque para mim isso é arquitetura, você entender o outro e agir no espaço de maneira a deixá-lo mais feliz, mais pleno, mais funcional a partir do outro, e não de mim, do que eu acho, vaidosa e egocêntrica, do que acho que é bonito e do que é tendência.

Começou a trabalhar assim que concluiu o curso?
Sempre fui empreendedora. Quando voltei de Havana, comecei a trabalhar porque queria ganhar o meu dinheiro. Fui dar aulas de espanhol no Senac. Depois, comecei a mandar currículo para empresas de comércio e exterior, para dar aulas. Quando estava no sexto período da faculdade, já fazia projetos de amigos e conhecidos. No último ano já pagava minhas contas com o dinheiro dos meus projetos.

Como foi sua adaptação em Belo Horizonte?
Foi ótima. Fui tão bem acolhida. Tanto é que arquitetura é uma profissão de relacionamento, de indicações. Atualmente, temos as redes sociais, mas e antes? Eram as indicações que traziam clientes, basicamente. E mesmo sem ter nenhuma família aqui, consegui criar laços com pessoas que acreditaram no meu trabalho e resolveram me ajudar. Deus colocou muitos anjos no meu cami- nho. Não tenho família, mas tenho gente boa. Já vi clientes meus ligarem para amigos e falar “não, você não vai fazer casa com fulano, vou te apresentar a minha arquiteta”. Como um laço de afeto e respeito. E assim foi.

Qual o seu diferencial?
Sempre procuro ter uma visão da arquitetura não romantizada. Não tenho estúdio de arquitetura, tenho uma empresa. Tenho 10 arquitetos que trabalham aqui, uma administradora. Tenho uma estrutura que precisa ser mantida, tem gente para ser treinada. Tenho um olhar empresarial para o meu negócio, acho que é uma diferença.

Adquiriu esse lado empresarial?
Sempre fui empreendedora. Tinha uma necessidade de viver do meu trabalho e ter uma estabilidade com isso no mundo. Não dava para ter trabalho em um mês e não ter no outro. Sou superorganizada, supercertinha. Mas acho que fui aprendendo ao longo do caminho. Fiz muitas empresas e sempre procuro ouvir de perto meus clientes, e saber tudo sobre o funcionamento do negócio, para criar o espaço perfeito, funcional. Perguntava tudo, como se faz, como o cliente chega, como se atende, como é o processo, qual é e onde é a falha. Quero de verdade entender a história do outro, e com isso fui aprendendo.

Você entende o negócio do cliente para oferecer a solução especial?
Hoje em dia, a informação disponível como ela é, a pessoa não precisa do arquiteto ou decorador para saber o que tem à disposição em acabamentos, ou quais são os bons fornecedores de iluminação. Se não tiver uma boa interlocução real, o profissional de design de interiores fica obsoleto. A arquitetura sempre será necessária na questão técnica para a edificação. Mas você mesma pode organizar sua casa, de um jeito lindo que tem a ver com você. Mas se eu não oferecer um embasamento técnico grande, porque eu tenho que dar todas as opções que existem, tenho que fazer uma escuta atenta à sua realidade – tem cachorro, gato, marido, filhos, moro sozinha, dou festas, gosto de ler, etc. –, tenho que entender de verdade quem você é e lhe dar esse subsídio técnico e aí eu vou conseguir agregar alguma coisa. Qualquer um pode ir para Milão e abrir os bons Instagrans de pesquisa que eu tenho. O escritório de arquitetura, hoje, tem que ser muito técnico. Tem que ter excelentes fornecedores e a cereja do bolo é o meu estilo, o meu viés. Quem nos contrata se identifica com essa curadoria.

Tem clientes que sabem o que querem e outros dão carta branca. Qual você prefere e como os atende?
O cliente chega no escritório de dois jeitos: uns trazem a planta desenhada e outros falam que não sabem o que querem, que é para eu escolher tudo. Não gosto de nenhum dos dois extremos. Se alguém me contrata é porque quer que eu trabalhe junto com ele. Isso é diferente para empresa, porque o executivo tem um budget, uma necessidade. Vamos falar de casa. A pessoa quer uma interlocução comigo, senão não me contrataria. Eu falo nem tanto ao céu nem tanto à terra. Vou precisar que ele discuta coisas comigo, porque a casa é para ele morar, mas também não serei uma Cadista, uma passadora a limpo de um raf do cliente. Vamos construir a casa, o apartamento juntos, e isso é o bacana. Conto sempre com muita ajuda do escritório. Não é uma equipe que só desenvolve projeto e passa minhas ideias para o computador. Trabalhamos totalmente na horizontal. Sempre atendo com um dos arquitetos, que vamos trabalhar juntos na criação, no desenvolvimento. O cliente terá contato comigo e com o arquiteto. São, no mínimo, três pessoas pensando no projeto e isso é muito rico. Nesse cenário, nenhuma feira é impositiva, mas serve de subsídio que fornece informações técnicas, mostrar no- vidades. É uma ferramenta. Quando uma pessoa chega falando que gosta de uma casa clean, clara, espaçosa, sem muita coisa, ambiente integrado. Ela não gosta disso, é um discurso batido aqui, de quem não tem informação, mas assiste muito a Irmãos à obra. Tenho que entender o que ela está querendo me dizer, e ela vai descobrir junto com a gente e isso é uma jornada muito rica, porque ela se vê no projeto. O que eu quero do escritório são essas duas bases, a base do encontrar o outro até o outro se encontrar, no exercício de fazer sua própria casa, e ter uma empresa séria, organizada, que me permite ter vários projetos aqui, em São Paulo, em balneários, Rio de Janeiro, Bahia. Se não tiver essa organização e profissionalismo, viro aquela arquiteta que atrasa, que não tem prazo, que projeta errado.

Trabalha em muitos lugares. Deve ser um corre-corre. É uma workaholic?
Não tenho fronteiras, amo desafios e minha vida é o meu traba- lho. Amo o que faço e sou um trator para trabalhar, me divirto, mas é óbvio que me canso, mas meu hobby é o trabalho. Há dois anos, contratei o Instituto Áquila para fazer uma consultoria no escritório. Fiquei muito orgulhosa de conseguir contratá-los. Afinal, sou uma mulher, sozinha, de um escritório pequeno e consegui uma consultoria que atende a empresas como o governo do estado, a Araújo, Cirela etc. Ficaram seis meses aqui dentro. Foram muito severos. Depois disso, dei um salto em processos, organização e gestão. Ainda falta muito, mas pelo menos agora sei o que falta. Com isso, fui capacitando o escritório para assumir outros lugares. Depois desse trabalho, o Mark Paladino, um dos sócios-fundadores do Áquila, que é também professor da Fundação Dom Cabral, saiu de lá e me propôs criarmos um curso on-line para gestão de escritórios de arquitetura e design a partir do que fizemos aqui. Acredito que será muito positivo que nosso mercado não é bom em gestão, nossa formação é técnica. Já temos uma turma completa, as vagas esgotaram rapidamente, e o curso será no próximo mês. Não consigo ficar quieta, viu.

Como foi na pandemia?
Um estouro. Voltando ao antropólogo Bachelard, a gente se espacializa na casa, quando podemos voltar o olhar para o mundo, podendo viajar, ir com frequência a restaurantes, os filhos vão à escola, inglês, balé, etc., você sai de si o tempo inteiro, vive para o exterior. Mas na pandemia não teve jeito, tivemos que voltar para aquela primeira unidade, para a família e para a casa, porque não tinha mais as atrações externas. E tiveram que encarar uma série de coisas que viam, mas não incomodava, porque conviviam pouco, então procrastinavam. O quarto do filho não está tão bom, mas ele quase não fica em casa, meu marido não gosta disso, mas ele passa a semana trabalhando em São Paulo, só fica aqui no fim de semana e a gente sai muito. Mas ficar 24 horas dentro de casa, você olha de verdade para sua casa, e entende que é o espaço que conta de verdade. Fizemos de tudo, desde grandes obras até reformas menores, apesar de que nosso escritório não faz projetos muito pequenos, não é nosso nicho. Cada arquiteto aqui cuida de oito a 10 projetos.  


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