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Estado de Minas entrevista

Curso que traduz o 'economês' quer aproximar as mulheres do mercado financeiro

A economista Luciane Ribeiro é sócia do GIMI Network, plataforma de educação financeira voltada exclusivamente para o público feminino


16/08/2020 04:00 - atualizado 16/08/2020 08:42

(foto: Luciana Prezia/Divulgação)
(foto: Luciana Prezia/Divulgação)
Se você é mulher, já deve ter se sentido excluída de alguma conversa sobre dinheiro, investimento e mercado financeiro. Por falta de conhecimento ou pela ideia de que não são assuntos femininos. O esforço para mudar esta realidade vem de iniciativas como as de Luciane Ribeiro, de 57 anos, que construiu sua carreira em bancos nacionais e internacionais e comanda um escritório que administra recursos de terceiros. A economista usou sua experiência, permeada por preconceitos, para se engajar em projetos que tentam aproximar as mulheres das finanças. Um deles é o Grupo Independente de Mulheres Investidoras (Gimi) Network, plataforma de cursos voltados para educação financeira. Traduzindo o “economês”, as aulas geram conhecimento e dão autonomia para que as alunas assumam o controle do seu dinheiro e (por que não?) do da família. O projeto, adaptado para o ambiente on-line em função da pandemia, chegou a Belo Horizonte através do grupo de mulheres Marias Bonitas de Lourdes.
 
Como começa a sua história no mercado financeiro?
Sou economista de formação e construí minha carreira no mercado financeiro. Por 36 anos, trabalhei em grandes bancos do Brasil e internacionais. Comecei como trainee no Boston e passei pelo Santander, Safra e Alfa. Depois, montei um escritório onde faço gestão e aconselhamento dos recursos de terceiros. Ajudo empresas e famílias a analisar onde aplicar seu dinheiro, se vale a pena comprar tal ativo, qual é a rentabilidade, como diversificar o patrimônio. Além disso, sempre fui ligada ao tema da mulher, dado que trabalhei numa área muito masculinizada, então sou uma das fundadoras da organização Women in Leadership in Latin America (Will), que defende o empoderamento feminino. Na maioria das empresas, principalmente do setor financeiro, mais de 50% do público são mulheres, mas elas têm representatividade pequena nos cargos de alta gestão. Trabalhamos este tema através de palestras, eventos e de um guia de empoderamento feminino. Queremos estimular as empresas a dar oportunidades às mulheres de ocuparem cargos de liderança. Também faço parte do comitê de investimento do fundo de pensão da Organização das Nações Unidas (ONU), nos Estados Unidos. Estou no segundo mandato, representando a América Latina. Agora sou uma das sócias do GIMI Network.
 
Como você se envolveu com a plataforma?
O GIMI começou com a Regina Giacomelli Politi, que, após o divórcio, se viu numa situação de desconhecimento em relação aos investimentos. Por isso, ela resolveu buscar ajuda através de pessoas mais próximas, amigas que já cuidavam dos seus próprios investimentos. Foi quando teve a ideia, junto com a Simone Schapira Wajman e a Marilene Bertoni Nigro, de montarem um grupo de estudos para ampliar os conhecimentos sobre o mercado financeiro. Esse grupo cresceu bastante e, num determinado momento, elas decidiram se profissionalizar e fazer disso um negócio através da educação financeira. Sempre gostei de levar conhecimento para as mulheres, integrá-las mais ao mercado financeiro, e nos juntamos para montar o GIMI Network, empresa lançada em março.

Você é a única sócia do GIMI que tem formação na área financeira. Qual é a sua contribuição para a plataforma?
Cuido da curadoria de conteúdo. A nossa ideia era montar uma escola de educação financeira diferente do que já existe no mercado. Em geral, os cursos são muito técnicos e acadêmicos ou são muito práticos, pensados para quem já trabalha no mercado financeiro e quer ampliar as oportunidades de carreira. O nosso é uma mistura. Então, atinge mulheres de qualquer espectro, desde quem não tem conhecimento e está vendo a necessidade de entender mais sobre mercado financeiro, quer ser mais participativa nas decisões sobre as finanças de casa, até profissionais que querem ampliar seu conhecimento. Abrange desde donas de casa a profissionais liberais e economistas. Criamos uma trilha com quatro módulos, que vão aprimorando o conhecimento. O módulo 1 é mais voltado para entender como funciona o mercado financeiro, indicadores econômicos, o papel do Banco Central, o que é produto interno bruto (PIB), inflação, a dinâmica das políticas fiscais. Já o módulo 4, um pouco mais avançado, trata do mercado de fundos de investimento. Além dos cursos, a mulher pode se tornar associada do GIMI. Pagando uma anuidade, ela participa de uma série de atividades, como encontros, podcasts, palestras e almoços, e ainda tem direito a uma assessoria financeira individual.

De que forma a educação financeira ajuda a mudar a realidade das mulheres?
Acredito que o fortalecimento das pessoas se dá através do conhecimento, isso em qualquer área. A mulher não foi criada para cuidar de finanças, prover dinheiro, trabalhar no mercado financeiro. Basta ver a diferença de abordagem entre brincadeiras de meninos e meninas. Meninas brincam de boneca e casinha, enquanto os meninos brincam de construir prédios e cidades. Então, existe uma distância muito grande da mulher em relação ao tema. Mas isso mudou muito. Nas classes C e D, quem provém os recursos da família são, em sua maioria, mulheres. Isso é crescente. Para mim, o conhecimento é a melhor forma de dar autoconfiança, capacidade e conteúdo para a mulher tomar suas próprias decisões e agir em relação aos investimentos. Mas, como é uma questão cultural, a mudança é lenta.

A educação financeira deveria ser obrigatória desde criança?
Existe uma área no governo que se chama Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef), formada por entidades públicas do Brasil, como Ministério da Educação, Banco Central, Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e Comissão de Valores Mobiliários (CVM). No fim do ano passado, saiu uma normativa em que as escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio podem inserir educação financeira no seu currículo. Entendo que educação financeira é um tema transversal, que passa por todas as matérias. Tem a matemática, mas também tem a parte do processo educativo, de aprender a lidar com o seu orçamento, de entender por que é importante poupar. Essa norma reforça a importância que tem o tema. Certamente, se iniciamos a educação financeira já no ensino fundamental, fica muito mais fácil o aprendizado. Tudo o que se aprende cedo vira conteúdo para a vida toda.
 

"Conhecimento é a melhor forma de dar autoconfiança, capacidade e conteúdo para a mulher tomar suas próprias decisões e agir em relação aos investimentos"

 
 
O grupo é restrito a mulheres até entre os professores?
Não, temos professores homens e mulheres. Entendemos que o homem faz parte de toda a cadeia e pode ajudar no processo de empoderamento da mulher. Não queremos criar um clube de mulheres, queremos ter participação masculina. Mas no curso o homem traz certa inibição, porque a mulher tem medo de fazer uma pergunta que parece ser muito básica. Se ela está em um ambiente feminino, elimina esta falta de confiança, entende que todo mundo é parecido, tem o mesmo nível de conhecimento, então vai se sentir mais à vontade. Por isso, decidimos ter um curso só de mulheres. O GIMI tem a ver com pertencimento, sororidade, relacionamento, troca de ideias e opiniões entre mulheres.

A pandemia atrapalhou os planos da empresa?
De fato, ficamos preocupadas com a pandemia, mas, justamente porque estão mais em casa, as mulheres encontraram tempo para fazer nossos cursos. Tivemos que transformar uma plataforma que originalmente não era on-line e estamos crescendo bastante. Como deixou de ser presencial, o curso agora tem abrangência nacional. Já fizemos lançamentos no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, aí através do grupo de mulheres Marias Bonitas de Lourdes. Conheci a Clarissa de Pereira Vaz, uma pessoa de luz incrível, no aniversário de três anos do grupo, quando fiz uma palestra sobre mercado financeiro. Temos promovido encontros e palestras on-line. Já convidamos escritório de advocacia para falar sobre planejamento sucessório e bancos internacionais para falar sobre patrimônio no exterior. Aprendemos muito com a pandemia. A empresa se adaptou muito rapidamente e agora quer manter a grade de cursos sempre atualizada no on-line, mas vamos fazer encontros presenciais também. Vamos focar primeiro em São Paulo e no futuro em outras cidades.

Como a plataforma trabalha a linguagem do mercado financeiro, que costuma ser um empecilho para que pessoas comuns se interessem pelo assunto? 
Como venho do mercado financeiro, consigo captar as dificuldades de quem não é da área e tem pouco conhecimento. Então, usamos uma linguagem muito básica para que de fato todo o público consiga entender. O nosso objetivo é transferir conhecimento. Se falarmos economês, com termos técnicos e em inglês, não vai adiantar nada. Em geral, os professores estão acostumados a dar aula para quem é do mercado financeiro, então trabalho forte com eles. Às vezes, faço intervenções na aula para dar este tom bem mais simples e básico, de forma que todo mundo consiga entender. Costumamos fazer pesquisas no fim dos módulos e muitas alunas comentam que a forma de explicar tem sido muito clara, simples e objetiva, então acho que estamos atingindo um dos nossos objetivos, que é traduzir o economês.

Como você disse no início, o mercado financeiro ainda é dominado por homens. Por quê?
Aumentou o número de mulheres que trabalham no mercado financeiro, mas a retórica é a mesma: a dificuldade de vê-las ocupando posições de destaque. Há várias explicações para isso. Uma delas é a maternidade. Não todas, mas muitas mulheres acabam postergando sua evolução de carreira sabendo que em algum momento da vida vão precisar se afastar. Então, saem do escopo de lutar por promoção. Não que façam isso de forma consciente, mas não se posicionam para alcançar cargos maiores porque sabem que terão a responsabilidade de cuidar do filho. Acham que não têm condição de competir com homens que estão no mesmo nível por causa da maternidade. Por isso, é fundamental as empresas ajudarem neste processo, até com acompanhamento psicológico, para que as mulheres entendam que isso faz parte da vida profissional delas. Gravidez não pode mais ser vista como empecilho. Hoje em dia, conheço várias grávidas que são promovidas e muitas empresas encaram isso muito com muita naturalidade. Na maioria dos países europeus, licença não é maternidade, o casal define se é o homem ou a mulher quem vai tirar. Em muitos casos, a mulher é a provedora e o homem, que trabalha em casa, pode cuidar do filho. Acho que precisamos desta evolução e temos caminhado para isso, mas ainda a passos de tartaruga.

Como foi para você, como mulher, atuar no mercado financeiro? Já sofreu preconceito?
Se me dedico a ajudar mulheres, tanto na ONG quanto na GIMI, é porque passei por isso muitas vezes. Passei por todo tipo de preconceito que você pode imaginar. Depois que atingi um patamar, passei a ser respeitada por todos, mas os processos são mais doloridos até você atingir um cargo importante. Aí já provou sua competência. Mas até chegar lá é bastante complexo, difícil, é uma luta. Tive tantas experiências que dá para escrever um livro. Digo para todo mundo ter muita determinação, muita resiliência, não desistir. Pedras no caminho existem em todas as carreiras, pessoas querendo ocupar sua cadeira, isso faz parte do mundo corporativo, mas acho que o que mais pega na carreira das mulheres é ter que se provar muito mais que os homens. O tempo de dedicação ao trabalho tem que ser maior, a mulher tem que estudar mais, trabalhar mais, o tempo todo tem que se mostrar mais competente, quando isso deveria ser um processo natural. Costumo contar que, quando participava das reuniões, os homens falavam por cima de mim, era normal. Então, para ser voz ouvinte no ambiente de trabalho, tinha que falar mais alto. Até hoje falo alto, tenho um timbre de voz que fui criando pela necessidade de ser ouvida. Tinha opinião sobre o tema e queria me expressar.

Sem querer reforçar estereótipos, mas o que as mulheres podem fazer de diferente no mercado financeiro?
O homem é mais focado, mais especialista na visão, enquanto a mulher tem uma contribuição mais completa, mais abrangente. Acho que tem a ver com o instinto feminino de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Podemos falar ao telefone e cuidar de uma criança. Isso traz uma habilidade de ter visão do todo, de uma forma muito objetiva, fácil, chamo de visão holística. Esta é uma contribuição enorme da mulher. Acredito nos conselhos que tenham diversidade, por isso a presença feminina é tão importante. A mulher também tem espírito mais colaborativo de equipe, habilidade de cuidar das pessoas, de se preocupar com os outros, então tem muita facilidade de construir um time. Acho que a mulher tem muita intuição. Posso dizer por mim: sou muito intuitiva. Eu menosprezava isso no começo, mas depois comecei a respeitar e valorizar a minha intuição. Cuido bem dela.

Em que pé está o plano de oferecer cursos gratuitos para mulheres de baixa renda?
Desde o começo, pensamos em ter algum projeto de impacto social. Isso é muito importante, tem que ser parte integrante do conteúdo de qualquer empresa no Brasil e no mundo. Como estamos muito no começo, a empresa está no quinto mês, ainda não conseguimos colocar isso em prática, até por causa da pandemia. Mas no futuro pretendemos montar um modelo para falar sobre orçamento doméstico. Sabemos, através de pesquisas, que as mulheres têm mais de 50% de representatividade no orçamento familiar, então é muito importante que tenham conhecimento para cuidar disso.

Qual é o legado que você quer deixar para o mundo?
O legado que quero deixar é de aceleração do conhecimento. Que não precisemos esperar mais um século para ter igualdade de salários. Quero acelerar todos esses processos através do conhecimento e acredito que a educação financeira é o caminho mais rápido. Tem muita gente dizendo que este é o século da mulher e, sim, estamos vendo uma representatividade maior, mulheres presidentes de grandes companhias e primeira-ministra de grandes países, como Nova Zelândia e Finlândia. Muito interessante que países comandados por mulheres têm se sobressaído no combate ao coronavírus. 


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