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Estado de Minas ENTREVISTA/RICARDO TRAJANO - 67 ANOS, EMPRESáRIA

Cura pelo afeto

Único sobrevivente de acidente aéreo em 1973, valoriza família, amizades e as relações pessoais, aprende com o passado, vive o presente e não se preocupa com o futuro


postado em 19/04/2020 04:00

(foto: Vivian Eliazar Moreira/divulgação)
(foto: Vivian Eliazar Moreira/divulgação)


Quem ouve uma palestra do empresário, ou melhor, do engenheiro se vira – como ele se denomina – Ricardo Trajano se apaixona pela postura positiva que tem diante da vida e para o valor que dá às pessoas. Aos 21 anos conseguiu comprar a viagem para Londres e conhecer suas bandas de rock preferidas, mas o sonho foi interrompido por um acidente com o avião, do qual ele foi o único sobrevivente entre as 123 pessoas que estavam no voo. Ganhou duas vezes na loteria, a primeira por conseguir estar em um acidente aéreo, que é um em três milhões; a segunda, quando sobreviveu. Não tem sequelas físicas nem psicológicas. É uma pessoa feliz, que tem valores reais e sabe que a vida é simples. Só há dois anos passou a fazer palestras contando sua história e sua experiência de como vê a vida.
 
Onde você nasceu?
Nasci no Rio de Janeiro. Somos só eu e uma irmã mais nova. Meus pais já são falecidos, Reginaldo e Ketty. Meu pai era mineiro, da Zona da Mata, e era seminarista junto com Domingos Paschoal Cegalla, mas depois desistiram e saíram do seminário e foram morar no Rio. Cegalla se tornou autor de livros de portugues e meu pai foi trabalhar em empresas portuguesas que estavam no Brasil e em algumas fábricas como um RP hoje. Meu avô materno era engenheiro espanhol, foi trabalhar no Paraguai, onde conheceu minha avó, se casaram, e minha mãe nasceu lá. Depois vieram para o São Paulo e em seguida se radicaram no Rio de Janeiro e foi lá que meus pais se conheceram.

Como foi sua infância?
Fui um menino como outro qualquer, um urbanoide, e amava minhas férias porque íamos para a casa dos meus avós paternos. Como disse, eles são da Zona da Mata, de Silverânia, perto de Rio Pomba, e moraram em Guarani. Passei minha infância e minhas férias lá e adorava. Meu avô era escrivão e maestro, puxei este lado musical dele, toco violão e contrabaixo. Por sinal, minha filha mais nova também herdou este dom musical.

Então é músico?
Não, não chega a tanto. Gosto de música, gosto de tocar, mas não tenho isso como profissão. Na realidade, fiz engenharia civil na Universidade Católica de Petrópolis, por influência do meu avô materno. Mas meu sonho era viajar para assistir a shows das minhas bandas de rock preferidas. E sempre pratiquei esportes. Nadei pelo Flamengo, joguei basquete no Botafogo e na faculdade.

Por isso queria ir a Londres?
Sim. Na década 1970, Londres era a meca do rock and roll. Tinha os Beatles, Rolling Stones, Led Zepellin. As bandas daquele tempo não vinham para o Brasil, mas tocavam muito na Europa. Meu sonho era passar um mês de férias em Londres e poder assistir a um show de alguma delas, mas era muito caro uma passagem internacional. Já estava na faculdade, fazia estágio, economizei meu rico dinheirinho e quando consegui, comprei a passagem. Era 1973, eu tinha 21 anos. Tinha uma agência da Varig, no Copacabana Palace, na rua de trás, e saí de lá com minha paixão e meu sonho realizado, vibrando.

Mas a viagem foi interrompida. Conte como foi.
Embarquei no Rio. Varig, voo RG 820, Boing 707, voo para Londres com escala em Paris. Estava tão ansioso que o voo saía às 23h30, mas pedi aos meus pais que me levassem às 16h30 para o aeroporto. Fui o primeiro passageiro a chegar. Naquela época escolhíamos o assento no balcão. As estatísticas dizem que os assentos próximos da cauda do avião são os mais seguros em caso de acidente aéreo, então eu pedi a última fileira.

Já foi pensando em um possível acidente?
Não, mas a gente sempre procura se precaver. Sei lá. A atendente disse que a última fileira era para descanso da tripulação e me colocou na penúltima fileira. Era minha primeira viagem internacional. O avião estava lotado, menos as duas cadeiras ao meu lado. Com isso fiquei à vontade, saía bastante do meu luar, andava pelo avião, porque sou muito alto, tenho mais de 1,90m, ficar sentado espremido era bem desconfortável. Cheguei a visitar a cabine de comando umas duas vezes durante o voo (naquela época era permitido).

Não aconteceu nada durante o voo?
Não, foi tudo tranquilo. Estávamos há cinco minutos do aeroporto de Orli, já preparados para o procedimento de descida, quando eu olhei para trás, dentro do avião, e vi uma fumaça pequena, branca, próxima aos toilletes. O comissário foi ver o que era. Não me pergunte por que, mas me levantei e fui para a frente do avião. Lá não tinha nenhuma fumaça. O chefe dos comissários me deu a maior bronca “Por que está em pé garoto? Não está vendo que o avião está chegando? É proibido ficar aqui, volte imediatamente para o seu lugar”. Olhei para a cara dele, mas parecia que não estava falando comigo.  Desobedeci literalmente e continuei andando para a frente. Quando cheguei perto da porta da cabine, tinham dois comissários desesperados gritando. Olhei para trás e a fumaça já tinha tomado conta de todo o avião, já estava lá na frente também. Era preta, densa, tóxica, parecia fumaça de pneu queimando. Quando virei pra frente de novo não consegui ver mais ninguém, estava tudo muito escuro e eles tinham parado de gritar, provavelmente porque estavam morrendo. Fiquei encostado na divisória. Não enxergava um palmo na minha frente, parecia que estava debaixo da terra. Me veio a sensação da morte, um flashback, aquele filme da vida, a família, os amigos, e senti a morte me abraçando.

O avião caiu?
Nesse momento, o avião inclinou muito. Na verdade, estavam procurando um lugar para um pouso de emergência porque se chegasse no aeroporto provavelmente ia explodir no ar. A cabine de comando já estava toda tomada pela fumaça e eles não enxergavam mais os instrumentos. Fizeram um pouso forçado em uma plantação de cebolas e assim que pararam o avião eu apaguei e o teto do avião foi caindo em chamas, as placas, a fuselagem foi caindo em cima das pessoas, carbonizando e queimando todo mundo. Caiu uma placa nas minhas costas. Eu estava desacordado e não senti nada.

Você foi dado como morto?
Sim. Levaram -me para o hospital, cheguei sem roupa e me confundiram com um comissário que tinha o mesmo porte físico que eu, o Sérgio Balbino. O Sérgio estava vivo e o Ricardo, sentado na penúltima fileira, estava morto. Essa foi a notícia que chegou ao Brasil e na minha casa.

E sua família?
Minha família ficou desesperada, minha mãe foi a única que acreditava que eu estava vivo.

E quando desfizeram o mal-entendido?
Fiquei 30 horas em coma, neste período, ainda em coma, pedi uma folha de papel e uma caneta, desacordado escrevi meu nome, o nome do meu pai, os telefones e o endereço da minha casa. Eu psicografei este bilhete, só pode. Pegaram o bilhete e foram na lista de tripulantes, não tinha nenhum Ricardo Trajano. Então foram na lista de passageiros e não entenderam como eu estava lá na frente com os comissários e não na minha poltrona com os outros mortos. A Varig ligou para minha casa, meu pai atendeu e eles comunicaram que eu estava mal, mas estava vivo. Já tinha se passado quase um dia inteiro, e de um grande velório virou uma grande festa. Minha mãe se levantou do sofá, apontou o dedo para todo mundo e disse: “Eu não falei que meu filho estava vivo?”.

Como foi quando você acordou?
Não entendi nada. Estava todo entubado e com muita dor nas costas. Olhei e vi que estava queimado. Queimei costas, nádegas e coxas. A primeira reação foi olhar as mãos, colocar as mãos no rosto para ver se tinha queimado também, e depois levantei a coberta para ver como estava o “meu amigo”. Fiquei feliz demais quando vi que estava tudo bem com ele.

Quanto tempo demorou para você ver seus pais?
Eles devem ter demorado uns dois ou três dias para chegar a Paris. Eu só podia vêlos de longe, pela janelinha de vidro da porta do CTI. Só depois de um mês mais ou menos, foi que eles puderam chegar perto de mim. Eu estava muito mal. Os médicos não me davam nem uma semana de vida. O meu raio X de pulmão era um atestado de óbito. Tinha edema pulmonar, hemoptise (cuspia sangue), ácido no sangue, taquicardia e por aí vai.

Tinha consciência desse risco de morrer?
Não. Sabia que não estava bem, mas que o estado era tão crítico assim, não fazia ideia.

O que lhe deu forças para lutar pela vida e se recuperar?
Meus pais faziam cartazes com frases como “Vamos lá, Ricardo”, “Força, Ricardo”, “Você vai sair dessa”. Todos os dias as enfermeiras entravam e me mostravam um cartaz. Eram frases bobas, mas cheias de energia, fé e esperança. Todo santo dia ficava esperando os cartazes, eram meu alimento. Recebia cartas de parentes e amigos, e de pessoas do mundo todo que eu nem conhecia. Recebia também fitas cassete. Tinha um gravador, mas não podia ouvir porque estava no meio do CTI. Então peguei um estetoscópio e punha a cabeça dele na saída do som para ouvir as músicas e mensagens dos meus amigos. Inventei o walkman hospitalar, pena que não tive a ideia de patentear essa minha invenção. Abri todas as cartas e as empilhei como se fosse um livro e lia e relia diariamente todas elas, como um livro. Tomava o melhor remédio para mim todos os dias, minha superdose diária que eram os cartazes, as cartas e as fitas e canalizava o pensamento para uma coisa só: vou sair daqui, tenho que sair daqui para dar um abraço e um beijo nas pessoas que eu mais amo. Isso era meu combustível.

A Varig lhe deu alguma indenização?
Naquela época não tinha nada disso. Pagaram todo o meu tratamento e as passagens dos pais, hotel etc., enquanto fiquei lá. Para as famílias dos mortos acho que deram algo em torno de 20 mil ou 30 mil dólares para cada.

Quanto tempo ficou no hospital?
Fiquei três meses hospitalizado, emagreci 15 quilos. Depois de seis meses voltei para a faculdade. Não fiquei com nenhuma sequela. Mas faltava uma coisa. Terminar a viagem interrompida.

Teve coragem de fazer a mesma viagem?
Sou ariano, teimoso, cabeça-dura. Um ano depois voltei na mesma agência da Varig, pedi uma passagem para Londres com escala em Paris. Não me identifiquei. A atendente me deu o preço na mesma hora. Eu interrompi e disse que ela não estava entendendo. Disse do acidente, e falei que eu era o único sobrevivente e que achava que a Varig me devia a passagem porque eu não tinha feito a viagem pela qual eu tinha pago, em cash, e não tinha chegado nem na primeira escala. Ela me deu um abraço carinhoso e minutos depois eu estava com a minha passagem em mãos. No dia do embarque, fui com um grande amigo meu, Maurício Valadares, a Varig soube que eu estava embarcando e nos deu um up grade para a 1ª classe. Bebemos todas. Quando o avião levantou voo, o Maurício disse que se eu levantasse nem que fosse para ir ao banheiro ele iria atrás de mim.

O que sente quando pensa que foi vítima de um acidente aéreo?
A probabilidade de acontecer um acidente aéreo é de um para cada 3 milhões de pousos, ou seja, eu pego uma pessoa e ponho ela para viajar todo dia de avião e ela vai precisar de 8.100 anos para sofrer um acidente. Mas eu estava em um desses voos. Não me vitimizo. Sou otimista por natureza. Não acredito neste destino que nossa vida está traçada e eu não preciso fazer nada, porque tudo vai acontecer, querendo ou não. Então, para que olhar para os dois lados quando vai atravessar a rua? Não adianta ficar em casa de braços cruzados esperando acontecer alguma coisa, ou na praia debaixo de um coqueiro esperando as coisas caírem do céu. O máximo que vai cair é um coco em cima da sua cabeça. Nós somos protagonistas da nossa vida. Jim Morrison, vocalista do The Doors, disse certa vez: “Nunca se dê por vencido, porque quando pensa que tudo acabou é o momento que tudo recomeça”. Tenho certeza absoluta de que é possível recomeçar a vida após uma queda, um trauma, um fracasso. Uma perda. Eu vivo o presente, o passado não volta mais, são nossas experiências, aprendemos com elas, o futuro eu não sei o que vai acontecer amanhã. Achava que minha felicidade estava lá no futuro, mas está aqui, dentro de mim, agora. Felicidade é só questão de ser. Hoje, sou sessentão, engenheiro se vira, trabalho com comércio, tenho que matar um leão por dia, mas não desisto, procuro manter o foco, ter atitude e tocar a vida, que é uma só, não tem replay, nossa edição é limitada.

Como passou a viver depois do acidente?
Nunca sonhei com o acidente, não tenho nenhum trauma. Meus valores mudaram. Percebi que somos simples e não precisamos complicar nada. Passei a valorizar cada minuto, viver o presente. Não estou preocupado com o coronavírus. Claro que me protejo, mas não estou desesperado, angustiado, nada disso. Estou tranquilo. Mas sei que o mundo vai mudar depois dessa pandemia, vamos ter outra atitude, acredito que vai aflorar o afeto e a gratidão. Precisamos começar a olhar o outro lado da moeda. As cartas que eu recebi de pessoas que nunca vi na vida eram cheias de solidariedade, de força. Tem muito mais gente boa neste mundo do que ruim, basta querer olhar o outro lado.

E o seu lado espiritual?
Tenho um lado espiritual muito forte. Creio nesta força maior que é Deus, que nos sustenta e conduz. Certa vez, conversando com um amigo sobre o acidente, quando disse que senti a morte me abraçando ele falou: “Não, Ricardo, era a vida te protegendo”. Olha que coisa mais linda. É isso mesmo, recebi um abraço protetor da vida, era a mão de Deus me protegendo.

Como veio para Belo Horizonte?
Vim em 1994, para abrir uma franquia da Mr. Cats. Em 1995, conheci Luciana Moretzsohn, com quem me casei, e tenho duas filhas – Julia, de 22 anos, que faz economia no Ibmec, e Marina, de 19, que faz direito na UFMG, e puxou a veia artístico-musical da família. 


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