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Estado de Minas TRADIÇÃO

Renda-se ao luxo

Ao longo dos anos, a renda tem uma história perpétua com a moda. As grifes internacionais não deixam de fora em suas coleções esse tecido feito A mão ou manualmente, que já foi objeto até de decreto real. As coleções francesas do ano que termina estão mostrando modelos e mais modelos atuais com rendas manufaturadas ou industriais


postado em 29/12/2019 04:00 / atualizado em 28/12/2019 18:39

Emanuel Ungaro(foto: Pascal Rossignol)
Emanuel Ungaro (foto: Pascal Rossignol)

Numa apropriação romântica do assunto, sem nenhuma base real, podemos pensar que o véu que Penélope tecia, enquanto esperava pela volta de Ulisses, devia ser uma bela renda. Não que exista qualquer registro sobre rendas naquela época. Mas a Grécia daquele tempo tempo atribuía uma grande importância ao corpo e os véus e tecidos transparentes eram tidos em grande apreço, produzidos com fios finíssimos de linho.

Na realidade, os tecidos de gaze e musselinas constituíram, a partir daquela época, o prenúncio das futuras rendas. Mas o exagerado gosto pelas rendas que se verificou na Europa Ocidental entre os séculos 15 e 18 poderia significar que, nesse período histórico, o culto da beleza plástica das formas femininas teria atingido sua máxima expressão. No que diz respeito à Europa, não foi exatamente isso que aconteceu. A loucura pelas rendas está associada à cultura.

As rendas de Veneza, Alençon, Argentam, Valenciennes, Malines, Chantilly, Bruxelas, Milão, Genova, etc., eram verdadeiras preciosidades, que se transmitiam como joias de família. A posse e exibição dessas rendas significam um determinado status social – e poder. Por essa razão, o culto das rendas partia dos dois centros de comando: a corte e a Igreja.

Esse símbolo explicito de vaidade estava associado a alguns aspectos curiosos. A Igreja era a maior consumidora de rendas, que não só enfeitavam a roupa dos bispos e padres como altares. E eram os homens que usavam mais renda do que as mulheres – faziam guerras recobertos de rendas e os exércitos carregavam com eles rendeiras para fornecer seu trabalho para a tropa. O uso da renda pelas mulheres era sinal apenas de status, uma vez que só a nobreza e a alta burguesia tinham acesso a ela.

A dificuldade de produção era um dos principais motivos pra a valorização das rendas. Artesanais, elas podem ser divididas em três grupos principais: as rendas de agulha, que são executadas com agulha de costura e um fio sobre um suporte provisório, constituído de papel; a renda de bilros, que aprendemos a tecer com os portugueses; e o crochê.

A renda de agulha nasceu em Veneza, no século 15, mesma época da renda de bilros, e a mais antiga referência que se conhece desse tipo de trabalho consta de uma partilha de bens realizada por uma família italiana em 1493. Por isso, alguns historiadores acreditam que a renda de bilros é superior à de agulha. A de bilros era produzida na Itália a de agulha só em Veneza.

Seu uso foi muito difundido principalmente pelos pintores da Renascença – que chegam ao detalhe de fornecer aos artesãos os modelos de renda que eles queriam pintar. Nasceu daí o primeiro livro de padrões de renda de que se tem notícia, editado em 1528 por seu autor, Antônio Tagliante. Veneza auferiu lucros incalculáveis com a venda de rendas para o mundo.

Lançadora famosa

Catarina de Médici foi quem introduziu o uso da renda na corte francesa – e o modismo foi tão desenfreado que o dinheiro gasto em sua importação praticamente esvaziou os cofres da França. O baque foi tão forte que o rei promulgou um decreto que proibia seu uso. Daí para se descobrir que em lugar de importar era melhor produzir foi um pulo.

A ideia partiu de Colbert, ministro de Luiz XIV que fundou, em 1665, na cidade de Alençon, as manufaturas reais do ponto de França – tocadas pelas mãos de 30 rendeiras de Veneza e 200 de Flandres. Nasceu assim o ponto de Alençon, que desbancou rapidamente o ponto de Veneza. Na França de Luiz XIV, o vestuário masculino tornou-se um monumento ambulante do trabalho dessas rendeiras. Os homens usavam rendas nas golas encanudadas, nos punhos, nas luvas e até nas botas.

A Revolução Francesa significou um golpe mortal para as rendas. A maior parte dos centros produtores foi fechada – e jamais reaberta, mesmo quando Napoleão Bonaparte se interessou pessoalmente pelo assunto. Outro golpe mortal foi recebido pela renda no princípio do século XIX, com o aparecimento do tear mecânico e as máquinas que industrializaram o produto, tornando-o acessível a todos. A renda de bilros chegou ao Brasil através da herança portuguesa e foi, durante muito tempo, uma ocupação dos conventos de freiras, que teciam alfaias para os altares das igrejas. Outro ponto de identidade que temos nessa herança é que as rendeiras daqui e de Portugal são quase sempre mulheres de pescadores. Não que elas sejam especialmente vocacionadas para esse tipo de trabalho, mas porque pelo litoral é que chegavam as novidades – e as rendas.

Nordeste rendendo

No último mês de setembro, uma grife cearense, a Rendá, fez sucesso na Semana de Moda de Milão com as rendas Renascença. A designer Camila Arraes mostrou uma minicoleção junto com modelos em richelieus franceses, abrindo espaço para esse tipo de criatividade manual brasileira a nível internacional. Segundo a estilista, a iniciativa italiana pediu que ela apresente algo tipicamente brasileiro, sem reinterpretações para adequar as criações aos padrões europeus. “Eles pediram que não tentássemos fazer algo voltado ao Velho Continente. O objetivo foi mostrar a renda nordestina. Afinal, foi isso que os encantou. A trama ao estilo Renascença, uma das principais características da marca, surgiu, inicialmente, em Veneza. Nos a levamos de volta, mas com cara de Brasil”, afirmou a designer.

Outra estilista de renda feita a mão é Martha Medeiros,  uma apaixonada que fez da renda Renascença sua matéria primordial. Desenvolveu e lapidou seu processo de criação através dos anos, desde a infância, em Alagoas, nos anos 60, observando a natureza ao redor como principal fonte de referência e inspiração: "Veja a mistura das cores nas falésias, do marrom à terracota passando pelos alaranjados. Isso é moda". Antes de lançar a marca que leva seu nome, em 2004, foi bem-sucedida empresária à frente de uma butique. Ela dá tanta importância às suas rendeiras que criou o projeto Olhar do Sertão, do Instituto Martha Medeiros. Sua relação com elas é dividida em duas partes bem distintas: uma mercadológica, através do trabalho remunerado e a política de metas, que permite que superem seu ganho financeiro de acordo com a produtividade. A outra é assistencial, levando auxílio em diversas áreas, como educação, saúde e independência financeira. Ela abriu sua primeira butique em São Paulo, em 2009. Na sequência, teve seus modelos presentes nas lojas Bergdorf Goodman, em Nova York, e Harrods, em Londres. Também participou de uma exposição sobre rendas em Calais, na França, e iniciou o processo de exportação para diversos clientes na Inglaterra, Estados Unidos e Oriente Médio.


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