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Estado de Minas Enem

A crise hídrica no Brasil

Que história deixaremos nas águas?


08/06/2021 15:26 - atualizado 08/06/2021 15:46

Rio. Nasce, corre, deságua, renasce. Água que leva peixe, gente, história, fé e tempo. Das velhas: rio Manuelzão. São Francisco: rio do adentrar, dos currais. Rio Jequitinhonha: rio esperança do vale. Amazonas: rio imensidão. Araguaia: rio das chalanas, da canoa de Milton Nascimento. Capibaribe: rio Severino, de João Cabral de Melo Neto, da morte e da vida. Tietê: rio marginal, da cidade grande. Xingu, Madeira, Tocantins, Paraná, Grande, Preto, Santo Antônio, Paraúna, Doce, Piracicaba. Água que não acaba. Rio acima. Rio abaixo.
(foto: Freepik)
(foto: Freepik)
Créditos: Free-pik
Os rios, desde a Antiguidade, fazem parte dos caminhos da humanidade. Quando Heráclito, filósofo pré-socrático, quis ilustrar o “devir”, elucidou que o homem não podia entrar duas vezes no mesmo rio, enfatizando o movimento e a constante transformação da essência. Os povos originários do Brasil acreditam na força das águas, depositando nelas o poder da cura e fazendo-as fonte de alimentos. Os pescadores fazem das ondas contadoras de histórias e sentem-se orgulhosos ao voltar com peixe grande para casa. Os ribeirinhos fazem dos rios: morada. Os antigos sabem da época da cheia e da seca, da hora certa de plantar e colher. Os povos das cidades, muitas vezes, vêm e vão sem remar e sem nadar, mas por cima de rios que correm sob concretos e viadutos.
 
E o que ficará escrito nas águas? Essa pergunta, nos dias atuais, tange diferentes aspectos, sendo fundamental ressaltar os impactos ambientais, sociais e econômicos associados aos diversos cursos d’água e às populações que vivem em seus arredores.
 
Em primeiro plano, destaca-se que o frequente descumprimento de legislações por grandes empresas configura o acontecimento de crimes ambientais no Brasil. A negligência de uma das maiores mineradoras do país, por exemplo, é apontada como causa dos rompimentos da barragem do Fundão, em Mariana, no ano de 2015, e da barragem da Mina do Córrego Feijão, em Brumadinho, no ano de 2019. Segundo o
Ministério Público Federal, 40 milhões de metros cúbicos de lama advindos do rompimento da barragem de Fundão trouxeram drástica mudança para a Bacia do Rio Doce, destruindo grande acervo da fauna e flora local, além modificar o espaço, a economia e os costumes de comunidades que dependiam das águas para sobrevivência. Em Brumadinho, a tragédia atingiu diversas famílias, causando a morte de mais 260 pessoas e prejudicando o fornecimento de água de cidades dependentes do Rio Paraopeba, de acordo com o Instituto de Gestão das Águas de Minas Gerais (IGAM).
 
(foto: Joana Lazzarini Projeto Cais )
(foto: Joana Lazzarini Projeto Cais )
Não menos importante, a insuficiência dos serviços de saneamento básico é uma realidade preocupante para muitos brasileiros. O Sistema de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2018, divulgou que 47% da população utilizava de medidas alternativas para lidar com dejetos gerados e 16% dos brasileiros não tinham acesso à água tratada. Isso significa que, em muitas localidades, os rios ainda são empregados para o despejo de esgoto e, ao mesmo tempo, como fonte de água para o consumo. Nessa perspectiva, essa fração da sociedade torna-se mais suscetível às verminoses e às doenças infecciosas em virtude de condições vulneráveis de saúde a que são submetidas. No vale do Jequitinhonha, por exemplo, a alta incidência de esquistossomose relaciona-se à falta de saneamento básico e à educação sanitária deficitária. Ademais, o despejo de matéria orgânica nos rios leva à eutrofização das águas, reduzindo a disponibilidade de oxigênio e aumentando a mortalidade de peixes, o que interfere negativamente na renda de famílias dependentes das atividades pesqueiras
da região.
 
Além disso, grandes empreendimentos, principalmente hidrelétricos, colocam em xeque a permanência da estrutura de diversos cursos d’água do Brasil. A construção da usina de Belo Monte no Rio Xingu, no estado do Pará, levanta polêmicas entre as comunidades indígenas locais, entre os ambientalistas e entre os empresários desde o ano de 2006. A instalação dessa obra modificou intrinsecamente os costumes e o modo de vida do povo Juruna, fazendo a Justiça Federal de Altamira reconhecer o aumento da subnutrição de crianças e do consumo de bebidas alcóolicas e de drogas ilícitas pelos indígenas como fatores relacionados ao funcionamento da hidrelétrica Belo Monte. Atualmente, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) defende a maior vazão de água da usina para o abastecimento dos ribeirinhos e para a garantia da preservação de espécies endêmicas em detrimento da maior geração de energia, o que gera impasses entre as empresas responsáveis pela distribuição da eletricidade que visam a maior lucratividade de suas atividades. A diminuição do peso do peixe Pacu, por exemplo, símbolo pertencente à gastronomia e fundamental para subsistência local, ajuda a comprovar os impactos do empreendimento sobre a segurança alimentar, sobretudo, das comunidades indígenas.
 
Diante disso, o questionamento heraclitano persiste: em que rio deixamos de entrar para tantas mudanças passarem despercebidas? A passagem das águas escreve histórias, modela relevos, forma aquíferos, fornece alimentos, garante subsistência e impulsiona vida em diversos ecossistemas. Resgatar, reconhecer, discernir e respeitar o que as correntezas trazem e levam consigo impulsiona a constante busca da essência pelos seres humanos. Preservar os recursos hídricos hoje é o que nos faz ter certeza da vida amanhã. Na sede, não se bebe dinheiro, não se bebe poder. Os rios precisam urgentemente renascer. E junto dele a humanidade dos seres humanos.
 
Artigo da Joana Lazzarini do Projeto Cais e Percurso Educacional

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