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Estado de Minas RACISMO ESTRUTURAL

Criança negra ao pai: 'Se eu fosse branco, você ia gostar mais de mim?'

'Me culpei por não conseguir mostrar a ele que nosso amor nos basta', escreveu o pai nas redes sociais; Guilherme foi adotado quando bebê por família de BH


02/02/2022 17:00 - atualizado 03/02/2022 09:49

Família
Guilherme foi adotado quando bebê pelo casal: família vive em Belo Horizonte (foto: Reprodução/Instagram)
"Se eu fosse branco, você e toda a minha família iam gostar mais de mim?", foi a pergunta de Guilherme, de 9 anos, feita ao pai em uma cartinha. O questionamento da criança, adotada por uma família branca belo-horizontina, impulsionou o debate sobre racismo estrutural nas redes sociais após o pai, Gustavo Bregunci, publicar a carta escrita pelo filho no Instagram.


"Me culpei por não conseguir mostrar a ele que nosso amor nos basta", escreveu Gustavo. "Que fique claro que isso não é mimimi e muito menos insegurança normal de uma criança de 9 anos", completou ao enfatizar que racismo é crime.

Após receber a cartinha do filho, Gustavo respondeu a criança com uma nova carta. "Amo seu cabelo, amo seus olhos, amo seu nariz, amo sua boca, amo sua cor! Não aceita nunca que alguém menospreze sua cor! O nome disse é racismo e já conversamos várias vezes: racismo é crime", disse, em trechos da mensagem.

O que é racismo estrutural?

Segundo o jornalista e especialista em Diversidade e Inclusão nas Organizações, Arthur Bugre, racismo estrutural é o resultado de um processo histórico. “Silvio Almeida, advogado, filósofo e professor universitário, explica que todo racismo é estrutural, ou seja, a séculos ele integra a organização econômica, jurídica e política brasileira.” 

Após mais de 300 anos de barbárie, torturas, desumanização e abusos psicológicos, iniciados com o tráfico negreiro por volta de 1535, milhões de escravizados no Brasil morreram, adoeceram e ficaram feridos. Somente em 1888, aconteceu abolição da escravidão no país e mesmo com essa oficialização, não houve nenhum amparo aos escravizados ou tentativa de capacitação da comunidade negra.

"Sem terras, sem direitos, sem acesso à educação e saúde, sem cidadania. Em vez de capacitar a comunidade negra recém-liberta, o Brasil, adotando políticas de incentivo à imigração de mão de obra da Europa, abandonando os ex-escravizados e seus descendentes à própria sorte", explica Arthur Bugre.

"Desde o fim da escravidão, essa ausência de políticas públicas reparatórias e a crescente desumanização das vidas e dos corpos negros fortaleceram ainda mais o racismo no país. Não é possível combater o racismo sem entender que ele é estrutural".

Um dos exemplos de racismo estrutural no dia a dia, são alguns apelidos depreciativos usados para tentar diminuir ou desqualificar alguém. Os escravizados eram chamados por diferentes expressões, além dos xingamentos e apelidos, e essa atitude racista atravessou séculos e ainda está presente nos dias atuais.

"Isso ainda se manifesta na forma como pais, mães e responsáveis falam e enxergam a população negra. Com isso, os descendentes dessas pessoas são ensinados desde cedo a naturalizar a reprodução de "piadas", "brincadeiras" e falas racistas. Crianças não nascem racistas, elas são ensinadas", diz Bugre.

"Muitas crianças negras, desde muito cedo e por diversas vezes, tem seus nomes substituídos por ofensas e apelidos racistas, como: "nega do saravá", "macaco", entre outros. Sem falar nas "brincadeiras" racistas que essa criança ou adolescente tem que enfrentar em diferentes lugares".

"Com isso, em várias situações elas ficam mais caladas, quietas para não serem vistas e, assim, evitarem ser alvo dessas "brincadeiras". Ou seja, o racismo ao longo da vida vai podando a espontaneidade e o sentimento de pertencimento dessas crianças e adolescentes. O que para algumas pessoas pode ser encarado apenas com uma 'brincadeira de criança', na realidade são atos que ridicularizam, ferem, magoam e atrapalham a autoestima delas de forma profunda", explica.

De quem é a culpa?


No caso da carta escrita pela criança, Arthur Bugre acredita que ela deve ter enfrentado muitas dificuldades e situações racistas que, de alguma forma, afetam sua autoestima. Entretanto, o pai se sentir culpado por não 'preparar' seu filho para o mundo racista, é algo complicado, pois, o especialista acredita que esse pensamento reforça que é obrigação exclusiva da comunidade negra responder ao racismo.

"Já conversei com alguns pais que são brancos e têm filhos negros e, essas pessoas trouxeram falas muito parecidas com a desse pai. 'Tento preparar o meu filho para o mundo. Eu não posso mudar o mundo. O Brasil é racista, há um racismo estrutural na comunidade'. As pessoas reforçam isso, de que a obrigação é criar os filhos para andar de cabeça erguida e saber responder".

"Eu não sou pai, mas quando tiver uma filha ou filho, irei orientar essa criança, pois ela estará num país racista, que fecha portas para pessoas negras. As experiências que eu já tive, não quero que essa criança passe, e sobretudo, que ela saiba se posicionar. Então, irei orientar, mas isso não substitui ações concretas para combater o racismo no Brasil", diz.

"Essa fala é problemática 'estou preparando meu filho para ele andar de cabeça erguida, porque essa é a única coisa que posso fazer'. De um jeito ou de outro, também estamos tirando do poder público e da sociedade civil, a obrigação de encarar esse racismo estrutural, de entender que essa questão não é só um problema da minha família ou da comunidade negra, que precisa preparar seus filhos e descendentes para enfrentar o racismo. Isso é uma questão social. O racismo estrutural é uma questão social", continua.

Por se tratar de uma situação estrutural, o racismo deve ser combatido por todos da sociedade, não só a comunidade negra. "A sociedade civil precisa passar por um letramento, os líderes políticos também precisam de uma mudança de consciência e cultura do país. Não dá para simplesmente preparar uma criança de casa, sendo que o mundo não está avançando. A mudança só consegue sair do papel para valer, se toda a sociedade de responsabilizar", afirma Bugre.

O combate ao racismo deve ser feito por todos, desde a infância. Segundo explica o especialista, pesquisas aprofundadas sobre o assunto e debates podem enriquecer o conhecimento e garantir a participação de todos na mudança.

"Educar seus filhos não-negros em relação ao racismo, procurar livros, pesquisas, séries, palestras que expliquem o racismo estrutural, entender de uma forma aprofundada a branquitude. Ou seja, todas as pessoas precisam se comprometer, não só eu ter a obrigação de explicar pro meu filho que o mundo é racista. Isso não muda de uma hora para a outra, mas a sociedade precisa se comprometer. Se não, joga apenas para a comunidade negra", afirma.

Racismo é crime?


No Brasil, o crime de racismo é previsto na Lei nº 7.716/1989, e se aplica à ofensa discriminatória contra um grupo ou coletividade, como, por exemplo, impedir que pessoas negras tenham acesso a estabelecimentos.

A injúria racial é a ofensa à dignidade ou ao decoro em que se utiliza palavra depreciativa referente a raça e cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Em outubro de 2021 o Supremo Tribunal Federal decidiu, por 8 votos a 1, que o crime de injúria racial pode ser equiparado ao de racismo e ser considerado imprescritível, ou seja, passível de punição a qualquer tempo.

Segundo o especialista, existem algumas ações afirmativas no Brasil que "buscam combater o racismo e as desigualdades que nascem dele, mas ainda precisamos avançar muito para criar ações afirmativas mais efetivas e sobre tudo que realmente são colocadas em prática".

"Não apenas de ações práticas que garantam direitos à educação, saúde, moradia e trabalho. Mas também maneiras de conscientizar toda a população sobre o que é o racismo estrutural, as diferentes formas como ele se manifesta, como ele prejudica toda a sociedade e também campanhas que promovam a humanização da população negra", finaliza.

*Estagiárias sob supervisão de Thiago Ricci e Vera Schmitz


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