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Estado de Minas

'Diários intermitentes' de Celso Furtado reúne a visão de uma figura emblemática para o país

Mais do que idealizador da Sudene, ele ajudou a construir um projeto de Brasil


21/10/2019 06:00 - atualizado 21/10/2019 07:20

Como cérebro do Planejamento, no governo JK, em encontro com o então presidente dos EUA John Kennedy e com Tancredo Neves (abaixo), do qual seria ministro da Cultura(foto: Arquivo EM/D.A Press - 20/7/1983)
Como cérebro do Planejamento, no governo JK, em encontro com o então presidente dos EUA John Kennedy e com Tancredo Neves (abaixo), do qual seria ministro da Cultura (foto: Arquivo EM/D.A Press - 20/7/1983)
Economista, criador da Sudene, ministro do Planejamento antes da ditadura e da Cultura após a redemocratização, Celso Furtado não é apenas um personagem importante na história do Brasil, mas também alguém que ajuda a contá-la. Ao longo de 65 anos, entre 1937 e 2002, ele registrou reflexões, relatos, ensaios, arriscou romances e deixou um enorme legado textual particular, que vem a público agora pelo trabalho da jornalista e escritora Rosa Freire D'Aguiar, com quem foi casado de 1978 até sua morte, em 2004. Em Diários intermitentes de Celso Furtado, lançado neste mês pela Companhia das Letras, a viúva do primeiro estrangeiro a assumir a cátedra de professor na Universidade de Paris organiza esses arquivos, construindo uma biografia intimista a partir dos pensamentos registrados manualmente por ele.

“Celso não foi propriamente um ‘diarista’. Não era alguém que chegava em casa e ia escrever. Isso não era corrente, ele não tinha continuidade nos diários que escrevia, por isso o título ‘intermitentes’”, resume a autora, que vasculhou dezenas de cadernos do marido – segundo ela, muitos deles inacabados, mas de grande valor. Os manuscritos incluem desde pensamentos idealistas de um jovem paraibano, ainda aos 18 anos, sobre a história do Brasil que gostaria de escrever, até registros de sua atuação política, criando a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) no governo de Juscelino Kubitschek (1956/61), assumindo o Ministério do Planejamento, em 1962, sob presidência de João Goulart, e o da Cultura, em 1986, quando Sarney foi eleito após o fim da ditadura militar. Também aborda os anos no exílio e a notável carreira acadêmica como professor de desenvolvimento econômico na Universidade Paris-Sorbonne.

“Ele podia passar dois meses sem pegar no diário, mas era um modo de falar consigo, mesmo diante de certas perplexidades, dificuldades na vida corrente e certos obstáculos na luta política”, afirma Rosa D’Aguiar. Ela destaca em especial três recortes históricos à luz dos registros reunidos no livro. O primeiro, relacionado à implantação da Sudene, no fim dos anos 1950. “Dar novas estruturas ao Nordeste era uma batalha, especialmente no Congresso, numa configuração muito diferente da de hoje”, comenta Rosa, que ainda cita a redemocratização, nos anos 1980, na qual “ele não era da luta política partidária, mas dava o apoio de pensamento”. Estão retratados, além disso, o processo de cassação do cargo no Ministério do Planejamento e o exílio após o golpe militar de 1964. “Foi algo que mexeu muito com ele, e o fez acreditar, de certa forma, que a geração dele tenha fracassado por ver tudo pelo que lutaram dar lugar àquele outro projeto de país imposto pelos militares”, afirma.

O período fora do país proporcionou uma trajetória destacada na universidade francesa, por seus pensamentos a respeito do desenvolvimento econômico da América Latina. Parte dos registros também remete a isso. “Além do grande papel no Brasil, ele foi um grande ator lá fora. Ensinou economia latina durante 20 anos na Sorbonne. Foram centenas de alunos, literalmente. Era um intelectual muito requisitado, protagonista como docente. Mas, sobretudo, um observador das coisas, via alguma cena e teorizava aquilo, cristalizando em forma de texto”, descreve Rosa.

(foto: Hélio Passos/O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas - 1/12/1961)
(foto: Hélio Passos/O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas - 1/12/1961)
BALANÇO DE VIDA 

Além de documentar a trajetória profissional, a coleção de relatos pessoais evidencia o aspecto que mais notabilizou Celso Furtado: seu pensamento. A autora enfatiza que parte dos textos representa “balanços que ele faz de sua própria vida”. “Ainda muito jovem, voltando da Segunda Guerra, com 25 anos, ele escreve sobre o que seria de seu futuro. Já formado em direito, descobre que não quer seguir carreira de advogado e magistrado. Ali ele já diz querer estudar as ciências sociais, a economia e pensar o Brasil, para superar os graves problemas do país”, revela. A curadoria feita por Rosa ainda abarca tentativas de incursão dele na literatura, com esboços de romances que ele gostaria de ter publicado. “Não são desenvolvidos, mas há personagens e a ideia central”, diz.

“É um livro mais íntimo do Celso, com toda certeza. Ele escreveu memórias, três volumes autobiográficos, editados também pela Companhia das Letras, com título de obra autobiográfica, mas que falam pouco dele próprio. Nesse aqui, são diários que nunca seriam publicados por ele. Vários ele nem sabia que tinha, mas nos quais ele se revela muito. Publicar o diário de alguém é sempre um risco, um campo íntimo, mas mesmo se abrindo prevalecem reflexões mais intelectuais do que de admiração ou raiva. Ele não estoura por ninguém”, interpreta Rosa D’Aguiar, que desenvolveu o projeto mirando o centenário do nascimento de Celso Furtado, no ano que vem. Além do livro já lançado, ela trabalha em outra publicação, reunindo o conteúdo de cartas que ele recebia e enviava, especialmente durante sua atividade acadêmica.

Sempre Um Papo com Rosa Freire D'Aguiar, João Antônio de Paula e Angelo Oswaldo
Terça-feira, 22 de outubro, às 19h30, na Sala Juvenal Dias do Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena 1.537, Centro). Entrada gratuita. Mais informações: (31) 3261-1501 e www.sempreumpapo.com.br. 

(foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas - 14/7/1961)
(foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas - 14/7/1961)
Obra vista como legado

Na próxima terça-feira (22), Rosa D'Aguiar falará sobre o livro no programa Sempre Um Papo, na Sala Juvenal Dias, no Palácio das Artes. Estarão presentes na conversa o prefaciador da obra, João Antônio de Paula, e também Angelo Oswaldo, que atuou como chefe de gabinete de Furtado no Ministério da Cultura, e enaltece a publicação como “um trabalho extraordinário no resgate do legado de Celso Furtado”. “Ele tinha uma letra miúda, muitas vezes de difícil leitura. Rosa leu todos os manuscritos, organizou, e assim resgata um período da história mundial da qual Celso foi partícipe como grande pensador latino-americano. É o primeiro economista latino que oferece uma teoria própria sobre desenvolvimento econômico, além da atuação como ministro da Cultura, justamente porque entendia que o desenvolvimento cultural é imprescindível para um país”, argumenta Angelo Oswaldo, que foi secretário de Estado de Cultura de Minas Gerais entre 2015 e 2019, durante o governo de Fernando Pimentel (PT).

Apesar de os diários contidos no livro reportarem ao passado, Angelo Oswaldo entende a contribuição de Celso Furtado como de grande valor atual. “Existem muitos preconceitos e chavões sobre ele, especialmente no campo conservador. Muitos chegam a considerá-lo um economista marxista, o que não corresponde com a verdade. Celso criou um pensamento original sobre economia e sobre processo de desenvolvimento socioeconômico. É, sobretudo, um pensador. Muita gente se perguntava o que um economista estava fazendo no MinC, mas ele não era só um economista, era um historiador. Ele refletiu sobre todo o processo da formação socioeconômica e cultural do Brasil e tem uma contribuição enorme para a compreensão da história do nosso país. É importante que seja conhecido em profundidade”, afirma o ex-secretário, que lamenta a retirada do nome de Celso Furtado de uma usina térmica da Petrobras, anunciada pela empresa na última semana.

Localizada na Bahia, ela havia sido batizada em 2007, durante o governo Lula, em homenagem a Furtado, um dos criadores da Lei da Petrobras, de 1953. Outras homenagens semelhantes feitas nessa época, que incluem personalidades como Luiz Carlos Prestes, no Mato Grosso do Sul, Mario Lago, no Rio de Janeiro, e Leonel Brizola, também no Rio, foram igualmente retiradas, numa iniciativa de perfil conservador do governo Bolsonaro. Segundo a atual gestão, sob presidência de Roberto Castello Branco, a decisão foi tomada para facilitar os registros no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). “Isso ilustra e demonstra a realidade do momento que vivemos. Quando o país começa a relegar seus valores mais genuínos, está condenado às trevas”, diz Angelo Oswaldo sobre a decisão.
DIÁRIOS INTERMITENTES DE CELSO FURTADO
Org: Rosa Freire D'Aguiar
Companhia das Letras
448 páginas
R$ 74,90 


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