Obras expostas nos pavilhões do Parque Ibirapuera, em São Paulo

Obras expostas nos pavilhões do Parque Ibirapuera, em São Paulo

Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress

São Paulo –
Ao entrar no pavilhão do parque Ibirapuera para ver a 35ª Bienal de São Paulo, o visitante parece ter voltado séculos no passado. Logo na chegada, um trilho de trem recuperado da empresa ferroviária de Gana, da época em que o país era uma colônia britânica, do final do século 19 até a metade do século 20, é a memória de um tempo em que mercadorias e pessoas tratadas como tal eram transportadas de trem na Região Sul do país.


“Como podemos, mais de um século depois, transformar os resíduos desta história num presente que escava memórias, constrói novas almas em objetos mortos e apresenta às gerações vindouras memórias esquecidas cheias de potenciais infinitos por vir?”, disse o artista no Instagram, num post no qual anunciava a recuperação de locomotivas da época colonial.

Alguns metros adiante no percurso da exposição, o visitante se depara com uma instalação composta por dezenas de peças esculpidas em madeira. O trabalho de Kidlat Tahimik é como se fosse um filme que se desenvolve, com cenas ali representada. Uma delas é a morte do colonizador português Fernão de Magalhães por uma deidade filipina, outra é a deusa dos ventos soprando a saia de Marilyn Monroe, e uma terceira é um cavalo de Troia que se dirige a uma reserva da floresta amazônica onde estão os indígenas levando dentro de si o Homem-Aranha.

“Lido com questões como o imperialismo cultural, mas de maneira divertida”, conta o artista de 80 anos, que trouxe uma equipe de seu país natal para montar a obra, incluindo seu filho, Kabunyan de Guia. “As novas gerações conhecem todos os super-heróis de Hollywood mas não conhecem os heróis e mitos locais”, acrescenta Guia.
 
Obra exposta na Bienal de São Paulo tem várias setas penduradas no teto com sua ponta virada para o chão

O tema 'Coreografias do impossível' permeia criações expostas na Bienal de São Paulo

Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress
 

Tempo não linear

Como se vê nas primeiras obras da bienal, a mostra de arte mais importante do país, a exposição quer elaborar os traumas do passado colonial enquanto a dominação do imaginário no presente.

A busca por ressignificar o passado está também numa pintura de Denilson Baniwa, um dos principais artistas indígenas em atividade, situada na entrada do primeiro andar. Nesta grande tela, Baniwa reflete de maneira figurativa sobre a cristianização forçada dos habitantes nativos do Brasil pela Igreja. "As meninas (indígenas) eram ensinadas a ser empregadas domésticas", ele diz, acrescentando que nem suas línguas nativas os indígenas podiam falar.

Na tentativa de alterar o curso do presente, Baniwa chama a atenção para o predomínio das empresas multinacionais sobre o plantio de grãos, com uma das maiores obras desta Bienal, uma plantação de diversos tipos de milho, elemento central na cultura do povo guarani. Como o milho demora cerca de três meses para se desenvolver, do plantio até a colheita, a ideia é que seja possível consumir pipoca e canjica antes do fim da exposição.

Tanto a plantação quanto as esculturas em madeira de Tahimik representam um tema que perpassa diversas bienais – o da passagem do tempo de maneira não linear, não cartesiana. Enquanto o trabalho do filipino embaralha o período colonial com o contemporâneo, o do indígena fala de uma tradição secular impossível de ter seu início e término determinados num calendário, diz Hélio Menezes, um dos organizadores da exposição.
 

Coletivo indígena

Ao acessar o segundo andar, o público é recebido por uma série de telas do coletivo Mahku, o Movimento dos Artistas Huni Kuin, formado por representantes deste povo indígena do Acre. As pinturas são representações visuais em cores fosforescentes das alucinações que os artistas têm ao tomar chá de ayahuasca, um ritual organizador da vida desta etnia, de acordo com Kássia Borges, uma das pintoras presentes na mostra.

Segundo ela, as pinturas têm função curativa, seja pelas águas, seja pelas folhas de tabaco pintadas nas telas. “Acho que o Brasil inteiro está precisando de cura, às vezes acho que o mundo está precisando de cura, aquela guerra (da Ucrânia)”, diz Borges, aos risos.
 
Obra do coletivo Mahku, criado por indígenas do Acre

Obra do coletivo Mahku, criado por indígenas do Acre

Instagram/Bienal de SP
 

Se o objetivo é curar o planeta, talvez Rosana Paulino, com duas obras expostas no terceiro pavimento, tenha a solução. Na série de desenhos inéditos que ela apresenta, mulheres se fundem com raízes de manguezais, ou nascem delas, num trabalho em grandes dimensões que, segundo a artista, é uma continuação das obras que mostrou na Bienal de Veneza do ano passado.
 
“Salvar a humanidade está no conhecimento dos ribeirinhos, dos quilombolas e dos indígenas”, ela afirma, acrescentando que há cinco anos se dedica ao projeto dos manguezais. “Para a população dos terreiros, a gente não tira uma folha das árvores sem pedir licença. A natureza está acima da gente, não o contrário.”

Patuás

Paulino, uma das artistas de maior destaque da exposição, apresenta também a obra que ela considera a inaugural de sua carreira, feita há 30 anos, chamada “Parede da memória”. Trata-se de um conjunto de patuás, os amuletos de religiões de matriz africana, na superfície dos quais a artista costurou retratos de familiares seus.

É uma das primeiras vezes em que a obra, que lida com a questão racial por exibir fotos de pessoas negras, é mostrada em sua totalidade, com 1.500 peças. "O trabalho dialoga com a população que não se viu representada durante toda a história da arte brasileira. É uma população que sempre foi objeto, nunca foi sujeito de suas histórias”, ela diz.

Artista plástico  Melchor María Mercadou registrou a Bolívia do século 19 em sua obra

Bienal exibe trabalhos de Melchor María Mercado, que registrou a Bolívia do século 19

Instagram/Bienal de SP

Tesouro boliviano exposto pela primeira vez

Em uma sala climatizada de paredes vermelhas, páginas de um livro estão cuidadosamente dispostas dentro de uma vitrine que percorre todo o ambiente. No papel amarelado pelo tempo, contrastam desenhos vívidos de personagens fantásticos, como um homem com vários rostos, seres com corpo humano e cabeça de animal ou um grã-fino senhor com cabelo de candelabro.

As antigas imagens são aquarelas de Melchor Maria Mercado, consideradas patrimônio nacional da Bolívia e que são expostas para o público pela primeira vez na história, na 35ª Bienal de São Paulo, fruto de longa negociação envolvendo o Itamaraty e que acabou por alterar a lei boliviana para empréstimo de obras de arte.

Em “Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes”, produzido no começo da República da Bolívia, Mercado tentou criar uma iconografia para seu país, afastando-se da etnografia eurocêntrica e do estilo neoclássico que predominavam na época. Ele tentou ao máximo capturar a diversidade cultural do país, com sua forte presença indígena, sem deixar de apontar a fragilidade e corrupção do poder político que se instaurava.
 
Apesar dos mais de 100 anos que as separam, sua obra se relaciona com a de Trinh T. Minh-ha, cineasta vietnamita que expõe “Corpos do deserto”, de 2005, e “Reassemblage”, de 1982, filmado em 16 milímetros.

No curta, Minh-ha filma pessoas no Senegal enquanto estas desempenham atividades cotidianas. “Ela também pensa na representação do outro com o outro, e não sem ele. Assim como Mercado, sua obra tem o elemento do humor e do grotesco”, afirma Manoel Borja-Villel, um dos quatro curadores da Bienal de São Paulo.

A rítmica entre obras antigas e novas permeia todos os pavilhões, ora como um balé, ora como dança contemporânea na Bienal que tem como tema as “Coreografias do Impossível”. Algo necessário em uma mostra em que 26% de seu elenco é composto por artistas mortos.

“Desviamos da ideia ocidental, do tempo como uma progressão. Aqui há a ideia do tempo em espiral, com rupturas, mas em que figuras do passado voltam ao presente constantemente”, diz Borja-Villel.

Um pouco mais à frente no percurso encontram-se os desenhos perturbadores de Ceija Stojka, romani austríaca deportada para um campo de concentração nazista quanto tinha apenas 11 anos. Sobrevivente do genocídio, a artista conseguiu pintar suas memórias apenas aos 50 anos de idade, se apropriando de uma atividade incomum para sua comunidade de forte tradição oral.
 
Violência nazista é denunciada na obra da rumani Ceija Stojka

Violência nazista é denunciada na obra da rumani Ceija Stojka

Instagram/Bienal de SP
 

Lembranças doloridas do hospício

Os desenhos de cores fortes e borradas, com formas pouco definidas e quase infantilizadas, como se fossem representações de lembranças doloridas, aparecem também nas obras dos brasileiros Aurora Cursino dos Santos e Ubirajara Ferreira Braga, que ganham espaço no terceiro pavilhão, lado a lado. Ambos passaram boa parte de suas vidas internados no hospital psiquiátrico do Juquery e colorem realidades difíceis com suas pinceladas.

Pelo peso de sua obra, pode causar estranhamento que, na parede em frente a Stojka, estejam os quadrinhos do americano George Harriman, que fez sucesso no início do século 20 com a série “Krazy Kat”. O protagonista, um gato que até hoje não teve seu gênero revelado, é apaixonado (e não correspondido) pelo rato Ignatz.

Mas assim como Sojka, Harriman reprime uma história. Entre as interpretações possíveis, está a de que Krazy Kat representou dilemas pessoais da vida do autor que, como homem mestiço durante as leis segregacionistas nos Estados Unidos, vivia a dualidade de pertencer e não pertencer ao lugar que ocupava socialmente.

Tema abordado também por Anne-Marie Schneider, mas de forma mais prática. Com traços simples, que poderiam ter saído de uma HQ, a francesa, hoje com 61 anos, desenha um corpo em diferentes espaços, geométricos e circulares. Pintados no mesmo tom de azul, a artista parece investigar as medidas espaciais, e se aquele corpo cabe ou não no local a ele designado. 

35ª BIENAL DE SÃO PAULO COREOGRAFIAS DO IMPOSSÍVEL

Até 10 de dezembro. Terça, quarta, sexta e domingo, das 10h às 19h; quinta e sábado, das 10h às 21h. Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Parque Ibirapuera, portão 3, São Paulo. Entrada franca.