Jards Macalé segura coração vermelho de plástico em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio

Jards Macalé pretende montar uma banda formada exclusivamente por artistas mulheres para acompanhá-lo na turnê de lançamento do disco

Leo Aversa/divulgação

Para que falar de ódio se a gente pode falar de amor? Com lançamento nesta sexta-feira (28/4), nas plataformas digitais, “Coração bifurcado” (Biscoito Fino), novo álbum de Jards Macalé, é monotemático, mas também multifacetado. O amor em diversas formas, sonoridades, formações e parcerias. E, sobretudo, como um “gesto político”, ele diz.

“O tema foi encontrado pouco antes do início da pandemia, quando no Brasil começou a coisa do ódio, da violência, das pessoas se maltratando, de pai não falando com filho, amigos brigando. Nesta discussão praticamente inútil, todas as palavras eram ditas, menos a palavra amor”, afirma.

Nascido na Tijuca, às 3h da manhã de uma terça-feira gorda (3 de março de 1943), Jards Macalé alcançou, no mês passado, os 80 anos. “Na madrugada do dia 2 para o 3, eu tive uma insônia danada. Fiquei pensando: esses 80 fecharam um pacote. Olhando para trás, foi bom à beça, com várias coisas boas e várias péssimas. Meu sentimento, agora que tudo passou, e não sei quantos anos tenho pela frente, é que vim ao mundo, na realidade, para fazer música.”

“Coração bifurcado” vem provar isto. É uma carta de amor à própria trajetória, aos amigos e parceiros dos primeiros tempos, como também de épocas mais recentes. O álbum é dedicado a Gal Costa, que participaria do projeto. O estúdio já estava marcado em São Paulo para novembro de 2022 (a cantora morreu em 9 daquele mês). Ela gravaria, somente com o guitarrista Guilherme Held, “Simples assim” (Macalé e Rômulo Fróes).

O tema foi encontrado pouco antes do início da pandemia, quando no Brasil começou a coisa do ódio, da violência, das pessoas se maltratando, de pai não falando com filho, amigos brigando. Nesta discussão praticamente inútil, todas as palavras eram ditas, menos a palavra amor

Jards Macalé, cantor e compositor

 

Perda

“Queria convidar as minhas amigas de sempre, Bethânia e Gal. A gente estava conversando muito pelo WhatsApp. A Gal estava com ‘Simples assim’ na ponta da língua e, de repente, veio essa notícia louca.” 

Tristíssimo – “Não por ela não participar do disco, mas não participar mais da minha e da nossa vida” –, convidou Ná Ozzetti, nome sugerido por Fróes, diretor artístico do álbum, para a gravação de “Simples assim”.
 
“Fiz um projeto Pixinguinha com a Ná, com shows tanto na Europa quanto no Brasil. E ela tem uma voz tão bonita, limpa. A gravação acabou sendo como a Gal faria”, diz Macalé. 

Já Maria Bethânia registrou “Mistérios do nosso amor” (Macalé e Ronaldo Bastos), samba-canção arranjado com Cristóvão Bastos. “Bethânia ficou hospedada lá em casa em 1966, quando ela veio da Bahia substituir Nara no show ‘Opinião’. Ficávamos cantando e tocando sem parar, por noites e noites. Pedi a ela que cantasse como fazia lá em casa, ao pé da cama, sem artifícios. Ela cumpriu perfeitamente o que pedi.”
 

A participação feminina se completa com Nara Leão (1942-1989), com “Amo tanto” (Macalé), a única não inédita do álbum. Gravada originalmente no disco “Nara pede passagem” (1966), é uma das primeiras canções compostas por ele.
 
“Era da época em que toda a minha geração, de Edu (Lobo), Dori (Caymmi), sonhava em ser Vinicius de Moraes. Ele era o nosso herói. É a letra de um garoto que quer morrer de amor.”

Para além dessas presenças, o disco contou com um grande número de músicos e parceiros. Fróes, que também fez a direção artística de “Besta fera” (2019), primeiro álbum de inéditas de Macalé em duas décadas – e uma resposta ao período tenebroso que se anunciava com a chegada do governo Bolsonaro – divide com ele a já citada “Simples assim” e “Pra um novo amor chegar”. 

Colegas de Fróes no grupo Passo Torto, Kiko Dinucci divide, com Macalé, a faixa-título; Rodrigo Campos cumpre a mesma função em “A foto do amor”. O encontro com a geração mais nova, tanto de parcerias quanto de público, é motivo de “uma felicidade muito grande”.

“Houve um momento em que passei 11 anos sem gravar (entre meados dos anos 1980 até o fim dos 1990, quando quebrou o jejum com “O que faço é música”, de 1998). Ninguém se interessava, e eu tinha preguiça de pedir. Se não me entenderam, se o mercado não me chamou, não queria também ficar chorando, no eterno movimento dos barcos, como o Capinan escreveu”, acrescenta, fazendo uma citação à letra de “Movimento dos barcos” (1971), canção feita com o parceiro baiano. 

“Coração bifurcado” traz ainda duas letras de Capinan, que Macalé chama de “meu Erasmo Carlos”: “Amor in natura” e “A arte de não morrer”.

Houve um momento em que passei 11 anos sem gravar. Ninguém se interessava, e eu tinha preguiça de pedir. Se não me entenderam, se o mercado não me chamou, não queria também ficar chorando, no eterno movimento dos barcos, como o Capinan escreveu

Jards Macalé, cantor e compositor


Anti sucesso

“Capinan é um parceiro e amigo na música e na vida. Vivemos algumas situações na ditadura e fizemos várias músicas. ‘Gothan City’ não foi a nossa primeira composição juntos, mas foi escalada para o Festival Internacional da Canção de 1969. O anti sucesso nos aproximou mais”, afirma Macalé.

 

A música, uma paródia do universo do ‘Batman’ que fazia uma previsão nada otimista sobre o futuro das metrópoles, foi recebida com uma vaia histórica.


“Capinan escreve muito no WhatsApp, onde mandou ‘A arte de não morrer’. Imediatamente telefonei para ele e disse que era minha. E ele nem tinha pensado em música, era um poema mesmo. Isto aconteceu dentro da pandemia, quando a arte de não morrer era a de continuar vivendo.”
 
Cantor Jards Macalé veste camiseta preta e está em frente a imenso coração vermelho de plástico inflável

Cantor e compositor diz que pretende criar banda só de mulheres, que pode ser batizada como Macaleias ou Macaletes

Leo Aversa/divulgação
 

Outro parceiro que se destaca no álbum é Ronaldo Bastos, que assina as letras de “O amor vem da paz” (esta em nova gravação, pois foi feita para o álbum “Síntese do lance”, que Macalé lançou com João Donato em 2021) e a supracitada “Mistérios do nosso amor”. “Queria trabalhar com o Ronaldo há muito tempo, estou sempre atento ao trabalho dele. O Ronaldo, inclusive, não é só Clube da Esquina.”

É ao sabor da guitarra à la Toninho Horta e de arranjos que ecoam o Clube que Macalé encerra o álbum. Com letra e música de sua autoria e um time enorme de instrumentistas de sopros, arranjados por Antônio Neves, ele termina “Coração bifurcado” com “Cante”, que, como a letra diz, é “a melhor coisa do mundo além do amor”.

Com o álbum lançado, ele não deve demorar a ir para a estrada com sua coleção de amores. Pretende criar uma banda exclusivamente de mulheres para tal. “Não me interessa cor, religião, crença. Se tocar bem, está dentro.” 

Diz que está querendo imitar Itamar Assumpção, que teve a banda Orquídeas do Brasil, e Ray Charles, que criou The Raelettes, grupo de backing vocals que o acompanhou. “Pensei em fazer as Macaletes ou Macaleias. Este último nome vem de uma obra (um penetrável) que o Hélio Oiticica dedicou para mim.”

“Macaleia é também o título do curta-metragem que Rejane Zilles, atriz, cineasta e companheira de Macalé há uma década, vai lançar neste ano, sobre a amizade dele com Oiticica. Há cinco anos, os dois fizeram no sítio que ele mantém em Penedo, na Serra da Mantiqueira (e local onde compôs a maior parte das novas canções), uma cerimônia de casamento. “Não um casamento formal, mas uma cerimônia celebrada por um casal de amigos da Rejane.”

A lua de mel foi uma tragédia. “Tive broncopneumonia e fiquei um mês no hospital. Intubado, com duas semanas de UTI com a Rejane ao lado, segurando a minha onda. Ela salvou a minha vida. Foi ali que descobri a arte de não morrer, que a gente consegue dar a volta por cima”, conclui Macalé.

capa do disco Coração Bifurcado tem ilustração de homem de blusa branca com as duas mãos em cada lado de figura que remete ao coração

capa do disco Coração Bifurcado tem ilustração de homem de blusa branca com as duas mãos em cada lado de figura que remete ao coração

Biscoito Fino/Reprodução
“CORAÇÃO BIFURCADO”

• Jards Macalé
• Biscoito Fino (12 faixas)
• Lançamento nesta sexta (28/4), nas plataformas digitais