(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas ARTES CÊNICAS

Depois de acidente quase fatal, atores refazem a cena do trauma em peça

"Senta que o leão é manso", que estreia nesta sexta (28/10), revisita acidente sofrido por Kelly Crifer em número de circo em dupla com Getúlio Ramalho


25/10/2022 04:00 - atualizado 24/10/2022 22:20

Montagem com os atores Kelly Crifer e Getúlio Ramalho, vestidos de malha branca, executando movimentos de contorcionismo
Kelly Crifer se acidentou e ficou em coma quando executava número circense em dupla com Getúlio Ramalho. Atores decidiram contar a história dessa experiência (foto: André Veloso/ divulgação)
 
 
Um espetáculo autobiográfico, que abarca a ideia do teatro-documentário e que mistura diversas linguagens é o que o público poderá conferir a partir da próxima sexta-feira (28/10), quando estreia no CCBB-BH “Senta que o leão é manso”. 

Em cena, a atriz Kelly Crifer e o dançarino Getúlio Ramalho revivem uma experiência traumática ocorrida em 2001 e que, de certa forma, determinou os rumos que suas trajetórias artísticas seguiram a partir de então.

Os dois estavam iniciando suas carreiras no Circo de Todo Mundo, um programa voltado para jovens em situação de vulnerabilidade social, com direção artística de Eid Ribeiro. Kelly estava, ao mesmo tempo, começando sua graduação em teatro pela UFMG. Ela conta que eram ministradas, pelo programa, oficinas em todas as especialidades do circo.

“Antônio Rigoberto, que dava aulas lá e depois foi para o Rio de Janeiro, começou a ensaiar com a gente um número de acrobacia e equilíbrio no rolo”, recorda a atriz. Os números circenses eram apresentados para, caso aprovados, serem incorporados ao espetáculo que estava sendo montado, e que foi batizado como “Senta que o leão é manso”.

Kelly e Getúlio foram integrados ao espetáculo, que estreou em uma lona montada no Shopping Del Rey, participou do extinto Circuito Telemig Celular e rodou o Brasil. Certa vez, a dupla foi convidada informalmente para apresentar o número de equilíbrio no rolo, que ganhou o título de “Nas garras da Mulher Aranha”, em uma festa na moradia estudantil da UFMG.
 
“Eu não tinha comido direito, tinha dado aula naquele dia, estava fazendo mil coisas. Já era madrugada quando fomos nos apresentar, e eu tive uma estafa corporal e mental. Desmaiei quando estava sendo sustentada pelo Getúlio, caí, sofri traumatismo craniano e fraturei a clavícula. Fiquei três dias em coma”, relembra Kelly.

Longe do picadeiro

A atriz conta que, durante o longo período de recuperação, se afastou do circo, seguiu fazendo a faculdade de teatro, e Getúlio, por sua vez, abraçou a dança como sua forma de expressão artística. A atriz diz que, posteriormente, quando se encontravam no Circo de Todo Mundo, aventavam retomar o espetáculo, mas o projeto nunca era levado a cabo. “O trauma foi grande”, pontua.

Na opinião da atriz, talvez de uma forma inconsciente, eles fugiam da possibilidade de voltar a trabalhar juntos. “Cinco anos depois do acidente, propus a Getúlio retomarmos, e ele me falou que já estava fazendo o número com outra pessoa. Depois, ele montou um espetáculo com uma dançarina, tendo aquele número como base, e me chamou para fazer a direção cênica. Eu disse ‘ótimo’, mas fugi, acabei não fazendo. É aquele negócio da ferida que você não quer abrir de novo.”

Em 2018, os dois se encontraram informalmente e, conversando sobre suas respectivas trajetórias – ela como atriz, que, além do teatro, começava a enveredar pelo cinema, ele como dançarino que rodava o mundo dando aulas –, tiveram a ideia de montar um espetáculo em parceria, que pudesse juntar as linguagens de um e de outro.

“A gente ficava tentando elaborar um espetáculo, pensar um mote, mas, nas nossas conversas  só vinha à tona o acidente, o trauma. Entendemos que não tinha como montar alguma outra coisa que fugisse disso”, conta. Em 2019, durante o programa Janela da Dramaturgia, do Galpão Cine Horto, Kelly escreveu o texto que deu origem ao espetáculo.

Ela observa que o “Senta que o leão é manso”, que estreia na próxima sexta-feira, não é uma atualização do que foi feito em 2001, mas sim um olhar sobre os efeitos de um trauma no corpo e na vida de uma pessoa. “É um corpo em dança, em performance, experimentando lidar de novo com uma situação. Fomos encontrando padrões repetitivos, o que tem a ver com as resistências que resultam dos traumas que esse corpo sofre”, destaca.

Com Eid Ribeiro e Antônio Rigoberto

Eid Ribeiro foi convocado para fazer a orientação de encenação e Antônio Rigoberto veio do Rio de Janeiro para cuidar da orientação circense, segundo a atriz, que, além da dramaturgia e da atuação, responde também pela direção, juntamente com Getúlio.

“Só eu conseguiria montar o que estava na minha cabeça. As imagens vêm fragmentadas, meio que como um sonho, e eu queria que as pessoas vissem um pouco como eu vejo as coisas”, aponta.

Ela diz que Eid ajudou a costurar esses fragmentos cenicamente, fazendo questionamentos e provocações, de forma que a dupla pudesse encontrar o tom do espetáculo.

“Eu e Getúlio cuidamos da direção, porque só nós sentimos o que era necessário passar. Mas, sem um olhar de fora, isso podia ficar solto e se perder. Eid se envolveu afetivamente, por ter sido parte da história, e conduziu nossas ideias”, salienta.

Ela sublinha que, mais do que simplesmente recordar o ocorrido, a ideia com “Senta que o leão é manso” é ver como a questão do trauma ecoa nas outras pessoas.

“Foi um episódio muito forte para mim, mas nosso interesse era ver como isso chega no espectador, como isso toca o outro, porque, em maior ou menor grau, todo mundo tem uma experiência traumática na vida”, diz.

"Corpo atualizado"

Além do teatro, da dança e do circo, o espetáculo se vale amplamente da linguagem audiovisual, mas, conforme aponta a atriz, tudo parte do corpo. Kelly observa que, depois do acidente, abandonou o circo, e Getúlio canalizou seus esforços para a dança.
 
“Agora, quando resolvemos montar esse espetáculo, entendemos que precisávamos partir do corpo. Juntamos elementos da dança e do teatro e, com o tempo e com a ajuda de Antônio Rigoberto, retomamos também os elementos do circo. Queríamos revisitar aquela experiência com o corpo atualizado, de forma mais preparada”, ressalta.

Ela diz que a adoção dos recursos audiovisuais veio na esteira, por um desejo que já nutria de trabalhar a tela como extensão da cena. Kelly destaca que as projeções tanto têm caráter documental quanto cumprem a função de dar forma às memórias, estendendo e desdobrando a narrativa.

A atriz e o bailarino trabalham com a presença da câmera desde o início do espetáculo e, enquanto o presente é posto em cena, o passado e a rede de memórias são exibidos numa tela que pode ser lida como uma terceira personagem.

Kelly explica que essa tela se faz presente como uma extensão dos corpos e também serve para conectar a dupla ao público, já que, antes e durante o espetáculo, a plateia é filmada e tem suas imagens projetadas, passando a integrar a cena de forma ativa.

“Foi uma forma que encontramos de mostrar essa memória fragmentada, um pouco como se fosse o quebra-cabeça dessa história que aconteceu há 20 anos. Minhas lembranças têm algo de onírico. A trilha sonora contém áudios com vozes, com ecos; isso se mistura com as imagens e quase personifica essas memórias. A gente propõe uma experiência sinestésica, para que as pessoas na plateia possam montar esse quebra-cabeça”, aponta.

Audiovisual

O emprego do audiovisual é o que explica, segundo Kelly, a presença de Rimenna Procópio na equipe, cuidando de cenários, figurinos e direção de arte. “Nós nos formamos juntas. Ela fez a direção de arte do filme ‘No coração do mundo’ (de Gabriel e Maurílio Martins, da Filmes de Plástico), em que atuei, e também de ‘Marte um’ (de Gabriel Martins). Precisávamos de alguém do audiovisual para pensar esse lugar. Ela traz com muita sensibilidade isso de como colocar a tela em cena”, diz.

A atriz observa que, a despeito de ter o corpo como ponto de partida e trabalhar com diversas linguagens artísticas, “Senta que o leão é manso” tem, efetivamente, uma dramaturgia, com textos que contam uma história. Esses textos compõem a narrativa juntamente com depoimentos em áudio de pessoas que acompanharam a história a partir do acidente em 2001.

“Eu venho com textos que são o lugar da experiência de uma mulher desmemoriada. Já a parte que cabe ao Getúlio traz a narrativa de forma linear. Ele faz um pouco o papel de ajudar as pessoas a montar o quebra-cabeça”, diz. Ela ressalta que a dupla não representa nenhum personagem – são eles mesmos reconstruindo com o público uma história, sob perspectivas distintas.

Kelly destaca que ela foi quem sofreu o acidente, mas o trauma também acompanhou seu parceiro de cena, por isso era importante que se colocassem em um lugar de quem vai dar um depoimento. “Enfim, vou poder contar essa história, e o Getúlio também, porque todo mundo olhou para a menina que caiu e se machucou seriamente; ninguém olhou para ele, que carregou uma culpa por muitos anos. Esse espetáculo é a oportunidade de ele também falar disso”, aponta.

Ela explica que, quando começou a escrever “Senta que o leão é manso”, estava trabalhando com uma narrativa em terceira pessoa: a atriz e o dançarino. “Depois, fazendo, nos ensaios, a gente entendeu que se tratava de uma relação muito horizontal com o público, do tipo ‘olha, sou eu te contando a minha história’. A gente poetisa, traz metáforas, mas, essencialmente, sou eu e o Getúlio contando nossa história.”

“SENTA QUE O LEÃO É MANSO”

• Espetáculo com Kelly Crifer e Getúlio Ramalho. Estreia na próxima sexta-feira (28/10), no Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). Fone: (31)3431-9400. De segunda a sexta-feira, às 19h. Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia), à venda na bilheteria do teatro e pelo site bb.com.br/cultura. Classificação indicativa: 14 anos. Até 21/11.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)