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Estado de Minas MÚSICA

Machismo reduz 'prazo de validade' de canções de Chico, Criolo e Racionais

Autor baniu 'Com açúcar, com afeto' de seus shows. Mano Brown deixou de cantar 'Mulheres vulgares'. E o termo 'traveco' foi expurgado da letra de 'Vasilhame'


06/02/2022 04:00 - atualizado 06/02/2022 02:56

ilustração de um violão com uma flor
(foto: Lelis)

"Adoro a canção, a história sobre como surgiu, muito bem escrita. Uma letra que dá voz a uma personagem. Um espaço bem delimitado na arte"

Fernanda Takai, cantora, que vai manter "Com açúcar, com afeto" em seu repertório


Escrita em 1967, “Com açúcar, com afeto”, uma das canções mais conhecidas de Chico Buarque, virou assunto nas redes sociais depois de circular a informação de que o compositor carioca decidiu não apresentá-la mais em seus shows, o que já ocorre há algum tempo. A declaração de Chico, dada no terceiro episódio da série documental “O canto livre de Nara Leão” (Globoplay), reacendeu o debate sobre a “validade” de músicas consideradas anacrônicas.

No documentário dirigido por Renato Terra, o compositor explica que “Com açúcar, com afeto” foi um pedido da própria Nara Leão (1942-1989). “Ela falou: 'Eu quero agora uma música de mulher sofredora'. E deu exemplos de canções do Assis Valente, Ary Barroso, aqueles sambas da antiga, onde os maridos saíam para a gandaia e as mulheres ficavam em casa sofrendo, tipo 'Amélia', aquela coisa. Ela encomendou e eu fiz”, explica Chico.

“Gostei de fazer, a gente não tinha esse problema. As feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim”, afirma o compositor.

"As feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim"

Chico Buarque, compositor, sobre "Com açúcar, com afeto"


“BOBAGENS” 

Na sequência, vídeo de arquivo mostra Nara falando sobre a canção. “Eu gosto muito de música em que a mulher fica em casa chorosa e o marido na rua farreando. Você vê que eu canto essas bobagens. Eu canto 'Camisa amarela', canto 'Quem é que muda os botõezinhos da camisa'. Então, o Chico fez esta aqui para mim”, ela diz, antes de começar a cantar “Com açúcar, com afeto”.

O samba foi gravado por Nara no álbum “Vento de maio” (1967) e até hoje está entre as canções mais conhecidas de seu repertório. Na prática, Chico Buarque não a inclui em shows há quase cinco décadas, desde 1975.

Apesar da polêmica, Fernanda Takai pretende mantê-la em seus shows. A cantora e vocalista do Pato Fu gravou a música em seu primeiro álbum solo, “Onde brilhem os olhos seus” (2007), cujo repertório é totalmente dedicado ao cancioneiro de Nara. Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, ela preferiu não comentar o assunto, mas usou as redes sociais para expressar sua opinião.

Em post de 28 de janeiro, Fernanda, que prepara a turnê do disco “Será que você vai acreditar?” (2020), declarou que “Com açúcar, com afeto” já estava no repertório da apresentação antes da polêmica. “E ela vai continuar”, avisou.

“Adoro a canção, a história sobre como surgiu, muito bem escrita. Uma letra que dá voz a uma personagem. Um espaço bem delimitado na arte”, afirmou a vocalista do Pato Fu.

O caso de “Com açúcar, com afeto” não é único na música brasileira. Com o avanço das discussões sobre machismo, homofobia e identidade de gênero, artistas decidiram assumir postura diferente daquela adotada no passado para evitar a pecha de anacrônicos.

"O que a gente percebeu foi o quanto a discussão voltou-se contra o movimento feminista que nem sequer é um só. Não houve mobilização, não houve cancelamento, não houve nada no coletivo que trouxesse 'a culpa' para o lado de cá"

Lilian Oliveira e Carolina Tod, no site Música Machista Popular Brasileira


“TRAVECO” 

O caso mais notório é o do rapper paulistano Criolo. Em 2016, ao relançar seu disco de estreia, “Ainda há tempo” (2006), ele alterou a letra de “Vasilhame”, que trazia o termo transfóbico “traveco”. Na versão original, Criolo cantava: “Os 'traveco' tão aí/ Alguém vai se iludir”. A nova versão ficou assim: “Universo tá aí/ Alguém vai se iludir”.

Mano Brown também se manifestou sobre letras consideradas machistas. Afirmou que não as cantaria mais, dando como exemplo “Mulheres vulgares”, do disco “Raio X do Brasil”, lançado pelo Racionais MC's em 1993.

Nela, o grupo de rap canta: “Envolve qualquer um com seu ar de ingenuidade/ Na verdade, por trás vigora a mais pura mediocridade (pode crê)/ Te domina com seu jeito promíscuo de ser/ Como troca de roupa, ela te troca por outro (né não!?)”. E mais: “Mulheres só querem, preferem os que as favorecem/ Dinheiro e posse, te esquecem se não os tiverem/ Nós somos Racionais, diferentes, se não iguais/ Mulheres vulgares (o quê?)/ Uma noite e nada mais!”.

O debate acalorado em torno do assunto nos últimos anos gerou o site Música Machista Popular Brasileira, o MMPB, hoje administrado por Lilian Oliveira e Carolina Tod. Criado em 2018, ele reúne canções consideradas machistas de diversos artistas e gêneros musicais. O objetivo, segundo o texto de apresentação, é “gerar uma reflexão a partir da análise”.

CEBOLA 

Na última segunda-feira (31/1), as duas utilizaram as redes sociais do MMPB para comentar o caso da canção de Chico Buarque encomendada por Nara Leão. “A polêmica de 'Com açúcar, com afeto' virou uma cebola, literalmente. São muitas camadas para descascar. Arte x artista, até onde pode ir a licença poética? E se esse artista não fosse o Chico, o que essas mesmas pessoas estariam pensando? E se, a partir de agora, qualquer artista puder usar o argumento de que 'não foi eu, foi meu 'eu lírico' para legitimar uma música problemática?”, afirmou a dupla.

Lilian e Carolina questionam o fato de o feminismo ser apontado como o responsável pela aposentadoria da canção. “O que a gente percebeu foi o quanto a discussão voltou-se contra o movimento feminista – que nem sequer é um só. Não houve mobilização, não houve cancelamento, não houve nada no coletivo que trouxesse 'a culpa' para o lado de cá.”

E concluem: “Como Lola (Aronovich, feminista) bem escreveu, esta foi uma decisão do artista que provavelmente tomou um toque de uma amiga ou outra. Lola e Nina Lemos declararam seu amor pelo trabalho de Chico e não vão parar de ouvir. Fernanda Takai tem essa música incluída no repertório de seus próximos shows. Enquanto individualmente muitas feministas fazem suas decisões, o 'movimento' no imaginário coletivo segue definido como 'as feministas estão cometendo um crime ao condenar essa canção'.”

O SAMBA DA DISCÓRDIA

Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa

Você diz que é um operário
Sai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê

Sei que alguém vai sentar junto
Você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias
De quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol

Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar

Quando a noite enfim lhe cansa
Você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão
Qual o quê
Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração

E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer?
Qual o quê
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você



























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