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Estado de Minas RESSOCIALIZAÇÃO

Literatura 'liberta' as mulheres que cumprem pena na Apac da Gameleira

Projeto Caminhos e Contos estimula 40 recuperandas a ler, escrever e contar histórias. 'Estou me reconstruindo através da palavra', diz Neide Aparecida


05/05/2021 04:00 - atualizado 05/05/2021 07:35

"Estou me reconstruindo através da palavra", revela Neide Aparecida Silva, condenada a 26 anos de prisão (foto: FOTOS: RAMON LISBOA/EM/D.APRESS)
Bestseller motivacional, “Quem mexeu no meu queijo?” (1998) é uma parábola que trata das mudanças que podemos fazer para alcançar nossos objetivos. Lucimar Aparecida Vieira, de 47 anos, tem algumas metas: se reaproximar do filho mais velho, Artur, e contar histórias para a caçula, Catarina.

Ela aprendeu com os personagens do livro de Spencer Johnson, dois ratinhos e dois homenzinhos, que as mudanças demoram, mas são necessárias. Uma das 89 recuperandas da Associação de Proteção de Assistência aos Condenados (Apac), na Gameleira, em Belo Horizonte, Lucimar cumpre pena de oito anos por tentativa de homicídio.

Laís Gabriele de Oliveira Silva, que ficará presa por oito anos e 10 meses, cria as próprias histórias na Apac
Laís Gabriele de Oliveira Silva, que ficará presa por oito anos e 10 meses, cria as próprias histórias na Apac

PILOTO 
Desde novembro de 2020, parte do seu tempo tem sido dedicada à leitura e à contação de histórias. “Quando pego um livro para ler, me sinto fora daqui, até flutuando”, diz. Lucimar é uma das 40 recuperandas participantes do Caminhos e Contos – A Ressocialização pela Palavra, projeto piloto criado em 2020 na Apac feminina.

A recuperação e a reintegração de condenados é a meta da associação. A principal diferença entre a Apac e o sistema prisional comum é que os recuperandos (como os presos são chamados) têm suas próprias responsabilidades. Não há vigilância armada nem tampouco a presença de policiais – a lógica é que os recuperandos cuidem de si próprios e dos outros. Eles têm as chaves dos portões e devem trabalhar e estudar. A unidade da Gameleira é a única Apac feminina em uma capital brasileira.

Neste mês, quando o complexo completa seu primeiro ano, Lucimar e suas colegas vão se formar. Em 26 e 27 de maio, haverá a formatura da primeira turma do Caminhos e Contos. Ainda que virtual, em decorrência da pandemia, a cerimônia vai contar com apresentação das recuperandas. Também está sendo produzido um livro em que elas contam as próprias histórias.

“Diferente do masculino, no presídio feminino as presas não recebem visitas. (Várias delas) Ficam sozinhas no final de semana, pois maridos e filhos não visitam. Essa foi uma das razões pelas quais escolhemos a Apac feminina para o projeto”, explica o idealizador da iniciativa, desembargador Tiago Pinto, superintendente da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes e 2º vice-presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

De acordo com ele, a degradação do cumprimento de penas no Brasil ocorre em decorrência do “processo de aniquilamento da pessoa”. “Trabalhando com um método de educação pela palavra, damos possibilidade ao presidiário de se projetar, de se fazer ver”, acrescenta.

A ideia é que as recuperandas se tornem multiplicadoras e a iniciativa seja levada para outras Apacs de Minas Gerais. A participação no projeto foi voluntária. Duas turmas, com 20 mulheres cada, têm encontros semanais de três horas com a contadora de histórias e editora Rosana de Mont’Alverne, coordenadora do projeto.

As oficinas tiveram início com um mergulho na tradição oral brasileira. “Quando você pega uma criança no colo e diz ‘Cadê o toucinho que estava aqui? Janela, janelinha, porta, campainha’, é um repertório que as pessoas têm, mas se esquecem dele. A primeira parte da oficina foi um resgate para as meninas verem que não são nulas. No processo, ensino a fazer adivinhas, quadrinhas, cantigas”, conta Rosana.

Durante os encontros, as mulheres participaram de dinâmicas para também recuperar cheiros, ruídos, vozes, paisagens. “Embora as memórias da infância para muitas tragam à tona lembranças duras, de abandono e de fome, outras encontram um lugar seguro e confortável”, continua ela.

À medida que o processo se intensificou, o grupo de mulheres passou a se preparar para contar a própria história. “Aí é como diz Drummond: ‘Eu não sabia que a minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé”, comenta Rosana de Mont'Alverne, citando o poema “Infância”. Para ela, o processo de mudança é profundo. “Vem do poder transformador da literatura, seja das histórias dos outros ou delas próprias.”

Em abril, o projeto teve um novo ganho, com a inauguração, na Apac, da biblioteca Cantinho dos Livros. O acervo veio de doações de servidores do TJMG, empresas e outras Apacs. “Quando conto uma história, também pego o livro e mostro que a história ‘mora’ ali”, diz Rosana. Cada recuperanda pode pegar emprestado um título por vez.

"(O processo de mudança) Vem do poder transformador da literatura, seja das histórias dos outros ou delas próprias%u201D

Rosana de Mont'Alverne, coordenadora do projeto Caminhos e Contos


“Elas estão se formando como leitoras, fazendo suas próprias resenhas, indicando leituras. É uma experiência de inclusão forte e poderosa”, explica a coordenadora do programa. Há títulos infantis, juvenis e romances. “A partir da biblioteca, pretendemos aumentar o patrimônio de conhecimento de cada pessoa”, diz o desembargador Tiago Pinto.

As recuperandas vêm, pouco a pouco, adquirindo (ou retomando) o hábito da leitura. Aos 21 anos, cumprindo pena de oito anos e 10 meses por tráfico, Laís Gabriele de Oliveira Silva ingressou na Apac quando o projeto já estava em curso. “Na verdade, quando cheguei já não tinha mais vaga. Até chorei para me colocarem”, diz ela, que está na turma de formandas.

Laís conta que na infância, passada com a avó, lia em casa e ouvia as histórias que ela lhe contava. Hoje, lê diariamente. Já passaram por ela livros infantojuvenis, mas também vários romances adultos da mineira Jéssica Macedo.

“No começo (da oficina), eu estava um pouco tímida, achava que só a Rosana ia contar histórias. Mas não, eu também. Meu Deus, aquilo foi criando um orgulho em mim e me tornou uma pessoa que admira mais os livros”, revela Laís.

Lucimar Aparecida Vieira, que cumpre pena de oito anos, se sente %u201Cflutuando%u201D quando lê
Lucimar Aparecida Vieira, que cumpre pena de oito anos, se sente %u201Cflutuando%u201D quando lê

ESPÍRITO 
Outra recuperanda que se tornou leitora assídua é Neide Aparecida do Nascimento Silva, de 51 anos, que cumpre pena de 26 por homicídio. Ela já leu, escreveu e contou histórias. “(A oficina) Me fez ver que embora esteja presa, posso encontrar liberdade no espírito, no pensamento. Estar presa é só o meu físico. Com as histórias, posso estar em qualquer lugar. Também aprendi a encaixar o sentimento para cada lugar: a ira, a raiva, o amor. O importante é você viver um dia por vez.”

Com longo tempo de encarceramento pela frente, Neide não desanima. Seu sonho, quando deixar a prisão, é contar histórias para os dois netos. “Estou me reconstruindo através da palavra”, conclui.


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