(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas ARTE E CIÊNCIA

Memórias despertadas por canções ajudam a lidar com a pandemia

Jônatas Manzolli, pesquisador de cognição sonora, diz que a música ajuda a estabilizar corpo e mente. Obra de Milton Nascimento vira 'terapia' para fãs


24/03/2021 04:00 - atualizado 24/03/2021 07:46

Milton Nascimento se surpreendeu com a repercussão do pedido para que fãs relatassem emoções causadas por suas canções(foto: Canal Brasil/Divulgação)
Milton Nascimento se surpreendeu com a repercussão do pedido para que fãs relatassem emoções causadas por suas canções (foto: Canal Brasil/Divulgação)

De algum lugar da mente, surgem as lembranças. Da época em que você se apaixonou pela primeira vez, de um momento político marcante ou mesmo de quando jogava futebol com os amigos no campinho do bairro. Essas recordações, muitas vezes, são revividas em forma de canção.

Jônatas Manzolli, especialista em cognição sonora, acredita que a música e outras manifestações culturais oferecem um caminho para a estabilidade. “As memórias induzidas pela música podem nos curar. Se temos um ‘minúsculo inimigo’, quase invisível, um caldeirão de notícias falsas e muito sofrimento, a escuta musical pode ser uma forma de desenvolver a nossa musculatura emocional”, enfatiza o pesquisador, com Ph.D. na University of Nottingham, no Reino Unido.

''As memórias induzidas pela música podem nos curar''

Jônatas Manzolli, especialista em cognição sonora

 
O isolamento social em decorrência da pandemia de COVID-19 nos pôs em situação de suspensão dos sentidos, acredita Manzolli. “Aqueles que não são negacionistas se colocaram num exílio voluntário de afetos, amores e abraços distantes. A pressão seletiva de termos que nos reconfigurar em espaços mínimos com informação redundante, todos os dias, nos induz a releituras de fatos e memórias. Precisamos ancorar nossas emoções para nos fortalecer e preservar a nossa identidade psicológica”, avalia.

De acordo com levantamento realizado pelo Spotify, em abril de 2020, a busca por canções nostálgicas cresceu 54% em meio à pandemia. A plataforma de streaming detectou que os usuários começaram a criar mais playlists com temática retrô. “Sweet child o’mine”, do grupo americano Guns N’Roses, “Se?”, de Djavan, e “Tempo perdido”, da banda Legião Urbana, foram as mais tocadas.

“Cantar era buscar o caminho que vai dar no sol/ Tenho comigo as lembranças do que eu era/ Para cantar nada era longe/ Tudo tão bom.” Assim dizem os versos de Fernando Brant em “Nos bailes da vida”, canção que Milton Nascimento lançou em 1981. O músico jamais imaginaria que, exatamente 40 anos depois, a humanidade, diante do avanço do novo coronavírus, buscaria refúgio em sua obra durante o isolamento social.

Erika Godoy tinha 7 anos quando ouviu “Canção da América” pela primeira vez. Hoje, aos 26, consegue recordar detalhes do que viveu na época. “Estudava em uma escola pública aqui no Rio de Janeiro, onde fui muito feliz. Tenho amigos dessa época até hoje. A professora trabalhou com a gente a ‘Canção da América’ em uma aula. A letra me emocionava e, ao ouvi-la agora, consigo me lembrar com riqueza de detalhes daquele momento. Eu era uma criança formando um ciclo de amizades”, conta.

No Twitter, Milton Nascimento pediu aos seguidores que relatassem lembranças que tinham suas canções como pano de fundo. “Teve algum momento especial da sua vida que tenha tocado uma música minha? Me conta essa história!”, postou ele. A publicação teve milhares de curtidas e comentários nas redes sociais.

''Em tempos difíceis, ouço 'Tudo o que você podia ser'. Quando a saudade bate, prefiro 'Mistérios'. Tenho muito apego a toda a obra do Milton Nascimento

Joana Carneiro Moreira, carioca radicada em Paris


Surpresa com repercussão 

Em isolamento social ao lado do filho, em Juiz de Fora, Milton se surpreendeu com a repercussão de seu apelo. “Quando a gente coloca uma música no mundo, é muito difícil imaginar os caminhos que ela vai seguir. Quando li as histórias que as pessoas contaram nas minhas redes sobre a relação delas com algumas dessas músicas, foi uma surpresa muito grande. Se pudesse, gostaria de ouvir pessoalmente cada uma dessas histórias e, mais ainda, de poder abraçar todos os fãs que me escreveram com tanto carinho”, diz Milton.

Erika Godoy tem escutado muita MPB nestes tempos de pandemia. “Caetano, Maria Bethânia, Chico Buarque e Elis, herança de minha mãe, que é fã e me fez amar. Sempre coloco uma playlist MPB anos 70 ou Tropicália no streaming. Tem me ajudado bastante, principalmente porque são composições mais profundas, então me apego àqueles dizeres que me fazem refletir”, revela.

Interação entre corpo e cérebro

Outros exemplos de que canções podem ser terapêuticas vêm de duas áreas que estudam a interação delas com o corpo e o cérebro: a musicoterapia e a neurociência da música. A canção não se manifesta apenas por meio da melodia. Há uma gama complexa de elementos: a letra, a interação entre as notas, as durações que produzem o ritmo, inclusive a ausência de som, ou seja, o silêncio.

“É um fenômeno antropológico, sociológico e cultural. Portanto, a música mexe com nossas emoções, porque é plástica e se propaga pelo corpo e pela mente”, explica o pesquisador Jônatas Manzolli.
Leonardo Motta, de 46, revela que “Coração de estudante”, parceria de Milton Nascimento e Wagner Tiso, desperta um outro tipo de reminiscência. Aos 10 anos, ele a ouviu sistematicamente na época da morte de Tancredo Neves (que, eleito indiretamente, não assumiu a Presidência da República), em 21 de abril de 1985, momento da transição da ditadura militar para a democracia no Brasil.

“A população estava com muita esperança de dias melhores. Foi uma comoção! E ‘Coração de estudante’ foi como um hino do momento”, diz Motta. “Minha família comentava muito sobre aquilo, éramos de classe média baixa e tudo girava em torno da expectativa de dias melhores. Me traz nostalgia.”

Em “Coração de estudante”, Milton Nascimento se refere indiretamente ao secundarista Edson Luís de Lima, assassinado por policiais militares durante um confronto no Rio de Janeiro, em 1968. A história não é explicitada na letra, mas as entrelinhas dão o tom: “Já podaram seus momentos/ Desviaram seu destino/ Seu sorriso de menino/ Quantas vezes se escondeu. Mas renova-se a esperança/ Nova aurora a cada dia”.

Do outro lado do oceano, em Paris, na França, Joana Carneiro Moreira também se refugia em hits do Clube da Esquina. “Meu pai já faleceu. ‘Travessia’ é a canção que me faz lembrar dele. Em tempos difíceis, ouço ‘Tudo o que você podia ser’. Quando a saudade bate, prefiro ‘Mistérios’. Tenho muito apego a toda a obra do Milton Nascimento”, conta a carioca, referindo-se, respectivamente às parcerias de Bituca e Fernando Brant, dos irmãos Lô e Márcio Borges e de Joyce com Maurício Maestro.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)