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No fio da memória

Em Meus começos e meu fim, Nirlando Beirão conta de amor, excomunhão, família e faz uma reflexão sobre a vida, sem deixar de fora sua doença degenerativa, e o jornalismo


postado em 24/05/2019 04:08


Na sacristia da matriz de Oliveira, cidade a 160 quilômetros de Belo Horizonte, há fotografias de todos os párocos que passaram pelo templo. Com exceção de um: António Cabral Beirão, o padre Beirão. O motivo: ele foi excomungado até a terceira geração por ter “trocado o amor divino pela paixão terrena”. Neto do ex-religioso, o jornalista e escritor mineiro Nirlando Beirão, de 70 anos, decidiu resgatar esse romance guardado a sete chaves pela família e que “se tornou um segredo que pairaria como uma sombra sobre as futuras gerações”. A história está em Meus começos e meu fim, livro que acaba de sair pela Companhia das letras e traz não só o caso de amor entre os avós paternos que deu início ao clã dos Cabral Beirão como as memórias e vivências de Nirlando, incluindo, a rotina com sua doença, a ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica). “Degenerativa’ é uma palavra que tira você para dançar – uma dança de medo. ‘Degenerativa’, a palavra me pinçou a alma quando o médico a pronunciou.”, relata em um dos trechos do livro.

Em entrevista por e-mail – em razão de sua condição, ele apresenta dificuldades de se locomover e de falar – o jornalista afirma que já acalentava há um tempo a intenção de narrar a saga amorosa de António e Esméria. “Expor um segredo familiar é sempre melindroso. Meu projeto, lá atrás, era escrever só para a família. E tive muita dúvida se a história do passado ia se enlaçar harmoniosamente com minha condição atual. Mas eu devia a história de meus avós a meus irmãos e a meus primos. Envolta em tabus, mistérios, silêncios, é no entanto uma linda e corajosa história de amor. Tinha começado a pesquisar, lentamente, como é do meu jeito, quando recebi o diagnóstico de doença do neurônio motor. Meu timing se acelerou”, revela o autor, que chegou a cogitar fazer um blog, inicialmente, para contar a história. “Mas achei que um livro expressaria melhor, como diria Camões, a dor que deveras sinto. Cuidei, não sei se consegui, de evitar a autocomiseração, a pieguice”, pontua.

Ao longo do processo de escrita da obra, chegou a ouvir comentários como “Você vai é se esconder atrás da história dos seus avós”. Muito pelo contrário. Nirlando se expõe de maneira franca e leve, apesar da dureza da enfermidade. A ELA afeta os neurônios motores – células responsáveis pelos movimentos voluntários da musculatura. Provoca fraqueza e atrofia muscular, contrações involuntárias e câimbras. Quando atingem os músculos da fala e da deglutição essas funções também são prejudicadas. Apesar desse comprometimento, dificilmente afeta células responsáveis pela percepção e raciocínio – nem mesmo em fases avançadas.

A narrativa tem início com o recebimento do diagnóstico, em julho de 2016. Em seguida, Nirlando vai recuperando a trajetória do avô desde o nascimento dele, em 1887, em Mangualde, distrito de Viseu, na região da Beira Alta, em Portugal, sua infância e a entrada no seminário. Uma das curiosidades é o colega seminarista, também António, mas que tinha como sobrenome Salazar e que se tornaria anos depois um dos ditadores mais violentos da história portuguesa. “Mas quem tinha mesmo physique du rôle de padreco e convicta vocação para o celibato era aquele colega de seminário também de nome António: António de Oliveira Salazar. Tornaram-se amigos. O dito Salazar escapou, porém, do magistério sacerdotal, e se daria por satisfeito em transferir seus recalques de virgindade solitária e seus achaques de emissário da verdade para o campo da política. Virou ditador, o professor doutor Oliveira Salazar, e por lentas décadas a fio reduziria Portugal do século 20 ao simulacro de um mosteiro do Baixo Medievo”, diz um dos trechos de Meus começos e meu fim.

Anos mais tarde, já casados, António e Esméria foram visitar em Portugal o agora famoso Salazar, na época em função vitalícia de presidente do Conselho de ministros. “Um busto de bronze do Salazar sempre andou lá por casa, amparando livros na estante. Não me lembro do vovô falando dele, mas a vovó, sim. Ela ficou encantada em ver o ditador solteirão receber com carinho o colega Tuninho na modesta casa dele em Santa Comba Dão, episódio que cito no livro. O busto do Salazar sumiu, pena. O Fernando Morais queria trocar comigo por duas estatuetas do Che, duas do Mao e uma do Chávez”, revela o escritor.

AQUELA GAROTA... Foi no começo da década de 1910 que o já padre Beirão chegou a Oliveira. O bisavô materno, Francisco de Miranda, viúvo, tinha um hotel no município, onde morava com os filhos. O pároco recém-chegado, vez por outra, aparecia para uma visita. “O suficiente para ser tomado de incômodo desassossego pela garota do bandolim (Esméria). E — ainda que ela tentasse disfarçar — vice-versa. O formigamento incontrolável teria arriscadas consequências. Deve ser estranha a sensação de se enamorar de um rapaz permanentemente amortalhado por uma sotana negra, já que padres então, bem antes das alforrias conciliares, usavam batina aonde quer que fossem. Mas o desejo faz suas travessuras sem respeitar o pudor das fatiotas, o pecado se imiscuiu na forma de olhares furtivos, e assim nasceu o esquivo romance do padre e da moça”, descreve o autor sobre o começo de tudo.


De perdão, mineirices e missão jornalística
Mas é claro que um romance naqueles tempos e numa sociedade extremamente conservadora iria ter consequências pesadas. António e Esméria decidiram ficar juntos, mas bem longe de Oliveira. O casal foi parar em Alegrete, no Rio Grande do Sul, quase na fronteira com a Argentina. Tempos depois, voltaram para Minas e se estabeleceram em BH, num sobrado na Rua São Paulo, no Centro. Nirlando Beirão – que em vários momentos da obra se refere ao episódio como o romance entre o padre e moça, uma referência ao poema de Carlos Drummond de Andrade – diz que o que mais o fascinou nesse episódio foi o tabu. “Imagina só o que não pesou a punição canônica numa família católica”, comenta.

O avô, pouco tempo antes de morrer, chegou a procurar o então arcebispo metropolitano na capital mineira tentando se “reagregar ao rebanho de Cristo”. “Ele chegou a crer na hipótese de terceirizar a remissão de seu delito. Na sinistra casamata (Cúria) imperava uma criatura igualmente sombria, o arcebispo Antônio dos Santos Cabral. Esse nome, aliás, encorajou vovô a procurá-lo, ele que seria também um António dos Santos Cabral se não tivesse meu bisavô decidido afixar o apelido toponímico – Beirão, natural da Beira – em sua descendência”. Mas Dom Cabral, conhecido por ter se recusado a abençoar a Igreja de São Francisco de Assis, a Igrejinha da Pampulha, por tê-la achado ousada demais, fazendo com que o templo permanecesse por 14 anos proibido ao culto – não se comoveu com o pedido. “Apresentava-se humildemente para tomar a bênção do dignitário da Igreja e se prostrar com toda a humildade perante alguém que poderia lhe conceder a esperança de uma graça divina. Dom Cabral despachou meu avô com a arrogância que lhe serviu, com certeza, pouco tempo depois, de passaporte one way para os quintos dos infernos”, relata Nirlando em um dos capítulos.

VEIA CRÍTICA Ao longo das páginas o escritor vai recordando as experiências pessoais como o nascimento da filha, Júlia, o casamento com a segunda mulher, a jornalista e dramaturga Marta Goes e, sobretudo, as profissionais. O acaso o fez parar diante de uma Olivetti na redação da sucursal mineira do jornal Última hora e o “conduziu ao longo da areia movediça de uma profissão incerta.” A profícua carreira soma mais de meio século e Nirlando – que faz parte de uma geração de ouro no jornalismo – ainda trabalha de casa na revista Carta Capital. “De fato, fomos uma geração privilegiada. No meu caso, o que tinha a dizer sempre expressei nos meus textos. Há um certo desalento hoje, mas o jornalismo tem de deixar de ser o mediador de uma normalidade anormal e voltar a ser a consciência crítica da sociedade”, opina. A relação com Minas também está bem presente no livro, que, para o autor, não deixa de ser um resgate afetivo do mineiro que nunca deixou de ser e do qual se orgulha muito. “O mineiro emigrado, eu escrevi, não vai atrás da Terra da Promissão, sabe que ela ficou para trás. Acho que o que tenho de mais mineiro é saber que o caminho mais curto entre dois pontos não é a linha reta”, analisa.

Mesmo com dificuldade de se comunicar, Nirlando Beirão não deixa de fazer o que mais gosta e sabe fazer: escrever. “As palavras foram me sumindo da fala. Ironia para quem vive delas há mais de cinco décadas. Ainda me comunico por escrito, menos mal”, observa o escritor, que acredita que o maior aprendizado que a doença lhe trouxe foi perder o medo. “Pode parecer arrogante, mas é isso mesmo. Mais importante ainda: estou aprendendo a receber o carinho que nem sei se mereço. O que mais desejo atualmente é aproveitar o dia a dia da melhor forma possível. Passou, espero, aquela fase punitiva do ‘o que eu devia ter feito e não fiz’”, ressalta.

“Um livro expressaria melhor, como diria Camões, a dor que deveras sinto. Cuidei, não sei se consegui, de evitar a autocomiseração, a pieguice” Nirlando Beirão,
escritor

 

 

Meus começos e meu fim
Nirlando Beirão
Editora Companhia das Letras (192 págs.)
R$ 49,90

 

 


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