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Estado de Minas

Lobos em pele de cordeiro


postado em 28/07/2019 04:00


Todos nós temos pensamentos e sentimentos. Surgem sem pedir licença para estrear na consciência. Por mais que os dissimulemos por serem antissociais, conseguem burlar a censura e mostrar sua carinha feia. Podemos controlar o que falamos, embora seja também difícil, mas o pensar e sentir são mais rebeldes ao controle.

Ficamos aflitos e constrangidos quando vaza um conteúdo considerado negativo. Se falamos demais, o que não devíamos, se escapa uma gafe, se não somos polidos. Estamos invariavelmente furando regras que asseguram um comportamento politicamente correto em prol das relações e laços que precisamos manter para viver numa cidade entre outras pessoas.

Se fizéssemos o que bem entendêssemos, o mundo seria caótico e impraticável a coesão social. Ser politicamente correto parece missão impossível. Não resta dúvida quanto à necessidade de a educação impor frustrações e limites sem os quais nos daríamos muito mal. Precisamos deles para controlar o narcisismo, a agressividade. É um sacrifício necessário na passagem da natureza para a cultura.

Por exemplo, crianças recebem a visita de outra criança que quer pegar seus brinquedos e, muitas vezes, destruí-los. Porém, o que ensinam os pais? Que não podemos ser egoístas, que devemos partilhar. Devemos emprestar o brinquedo e deixar a outra criança brincar um pouquinho. Não podemos arrancar nosso brinquedo da mão da visita, blá-blá-blá. Enquanto eles falam isso, estamos de cabelo arrepiado vendo a cabeça da boneca voar, roda do carrinho rolar, querendo não só tomar de volta nosso brinquedo como esganar o intrometido.

Temos ciúmes, ódio, inveja e uma gama de sentimentos e afetos que, agora adultos, nos parecem inconfessáveis porque nos fariam ser severamente criticados e culpados, já que adquirimos os ideais da cultura como nossos. Mas lembrem-se de que até mesmo Santo Agostinho confessou seu pecado: o ciúme/inveja de seu irmão recém-nascido amamentando.

Os Dez Mandamentos têm igualmente o objetivo de conter impulsos indesejáveis; caso contrário, viveríamos na barbárie, no olho por olho, dente por dente da Lei de Talião. As leis vieram a fim de regular as relações para que o mais forte não abuse do mais fraco pela força, para manter direitos iguais pela manutenção da tribo.

Freud em seu livro Totem e tabu conta o mito do pai primevo. Era o macho mais forte, tinha a posse de todas as mulheres, poder ilimitado sobre todos, cabendo à sua prole a obediência e abstinência. Um belo dia, não tão belo, uniram-se os irmãos irados contra o pai e o mataram. Fizeram um festim e comeram seus pedaços. Porém, nenhum deles queria o lugar do pai, pois seu destino seria igual.

Eles, então, se arrependeram do feito, pois também amavam aquele pai que os protegera e provera. Por isso fizeram um pacto: cada um teria sua mulher, posses e direitos limitados para que a comunidade se perpetuasse. Cada um aceitaria a castração: ninguém seria todo-poderoso, todos seriam obrigados a abrir mão de uma cota de agressividade e narcisismo pelo convívio possível. A lei passa a ser condição para a vida em comum.

Assim é. Temos todos que nos sacrificar e este sacrifício tem um preço. O preço do mal-estar existencial do qual ninguém escapa. E também para evitar tragédias como as que vemos nas TVs quando alguém sai do controle de seus impulsos e se julga dono do outro ou da verdade absoluta praticando atos que desagregam a sociedade.

É impossível erradicar todo narcisismo e agressividade e ingenuamente nos vestirmos de cordeirinhos. Melhor é ter consciência e evitar excessos, saber que qualquer um é passível, em determinadas circunstâncias, de romper limites. Pois em nós a natureza indomável dos afetos e sentimentos nos afeta.

Melhor é admitir as tendências antagônicas das pulsões de vida e de morte a serem administradas e não negadas, porque o que não é admitido se torna incontrolável. Agimos na condição de desmentir. Tipo: eu jamais faria isso... sem ver que já se está fazendo...

Assim, melhor saber que por trás de nosso lado generoso, solidário e polido mora um estranho ao qual devemos atenção, pois ele pode resolver mostrar as garras por aí... e mostra.

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