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Estado de Minas RAMIRO BATISTA

Como combater Olavo de Carvalho da forma certa, sem negar seu legado

É preciso separar o gênio de ideias indispensáveis de até 2014 da persona que o sucesso transformou num vaidoso recalcado de tentações negacionistas e golpistas


28/01/2022 09:42 - atualizado 28/01/2022 12:03

Olavo de Carvalho sentado à mesa
(foto: José Hipólito / Divulgação)
A primeira, grande e única condição de praticar com competência o famigerado esporte de combater Olavo de Carvalho é ler pelo menos o principal do que escreveu. Grande parte de seus detratores mais virulentos não leram.

Lendo, uma forma eficiente de criticá-lo com mais ou menos vigor, sem cair no ridículo de negar a sua importância, sua genialidade e seu legado, é separar os Olavos anterior e posterior a 2014. 

Para entender a diferença entre o gênio que foi até aí e a persona polêmica, contraditória e mesmo perigosa em que se transformou em seguida. Ao cavalgar para efeitos midiáticos tentações negacionistas, conspiracionistas e golpistas que abalaram os alicerces de sua catedral de conhecimento.

É o ano em que se descobre a dimensão de sua obra, do volume de seguidores fiéis dispostos a pagar para ouvi-lo, de seu papel na formação de uma militância de direita que resultaria na derrubada de Dilma e na eleição de Bolsonaro e na formação de uma elite intelectual conservadora para dar frutos pelos próximos 30 anos.

Saía como marco O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota, coletânia cuidadosa organizada por um de seus adeptos proeminentes, Felipe Moura Brasil, sobre o melhor que havia publicado em livros e jornais nos 24 anos anteriores. Saudada assim por Reinaldo Azevedo, em resenha na Veja:

— Ninguém, no Brasil, escreve com a sua força e a sua clareza. Consegue, como nenhum outro autor no Brasil — goste-se ou não dele —, emprestar dignidade filosófica à vida cotidiana, sem jamais baratear o pensamento.

Descobria-se uma legião de alunos apaixonados que qualquer doutor de universidade invejaria, cheia de histórias de conversão e descobertas de um sentido para a vida a partir de suas pregações por autonomia intelectual como forma de fazer diferença na vida e no combate político, especialmente.

Inspirava o pensamento independente como forma de enfrentar a distorção da realidade pela ideologia e impactava pela força com que manejava provas, argumentos e construções elaboradas sem perder a clareza, numa contundência a ponto do incontestável.

De tal forma, que acabou firmando entre seus milhares de adeptos o axioma de que seus críticos evitavam lê-lo para não serem convencidos. Na linha de outro de seus grandes ensinamentos:

— Você não deve escrever para irritar, mas para destruir, deixar o adversário sem resposta.

Tinha  deixado sem resposta e um tanto ridicularizada a elite intelectual das universidades, da indústria cultural e da imprensa, no início dos anos 90, com os três primeiros livros demolidores, depois de afastado por duas décadas do debate público, dedicados a construir e refinar sua filosofia.

Em A Nova Era e a Revolução CulturalO Jardim das Aflições e O Imbecil Coletivo, publicados entre 1991 e 95, desancava intelectuais, celebridades e políticos paparicados pelo mainstream midiático, para denunciar um estado de indigência cultural resultante da adesão sem reflexão às ondas da moda.

Era um tempo em que o moderno era ser "progressista" contra o mundo injusto e em defesa dos movimentos sociais como MST, e não mais "revolucionário" como os modernos dos anos 60. O filósofo da USP José Arthur Gianotti era pop. Caetano Veloso, in telectual de revista, era pop. O deputado petista José Genoíno era pop.

Ex-guerrilheiro jovem, simpaticão e muito articulado, estava em todas as publicações respeitáveis como porta-voz da geração que abandonara as ilusões da luta armada para conquistar espaço dentro e com os instrumentos da democracia. 

Eram elaborações profundas, corajosas, inovadoras e ao mesmo tempo cristalinas sobre a encruzilhada política em que havíamos nos metido. Cujas origens e perspectivas sombrias, de reflexos percebidos hoje, explicava e previa com lentes de oráculo.

Debochou da seriedade com que encaravam uma obra rasteira de auto-ajuda, A Nova Era, de Fritjof Capra. Triturou os critérios da sofisticada coleção Os Pensadores, da editora Abril, transformada em seminário aplaudido em delírio. Percebeu e denunciou já aí, antes de todos, a desgraça do politicamente correto, importada dos EUA.

Formulou sem contestação à altura as bases de sua tese da hegemonia cultural em curso, pela ocupação de espaços pela esquerda nas universidades, na indústria cultural e na imprensa. O que lhe permitiu prever o contrário do que sugeria o fim dos regimes comunistas simbolizado na queda do Muro de Berlim, em 1989.

Ao contrário de todas as evidências e do alarde de que a esquerda estava morta, com base na revolução cultural lenta que se dava nas instituições mais influentes, previu que ela caminhava para tomar o poder no Brasil mais cedo do que se imaginava. Mais especificamente, o PT.

Por isso, nunca se preocupou com as denúncias de corrupção que abateram Fernando Collor de Mello como iria relevar as do Mensalão e do Petrolão contra Lula. Achava a delação uma desonra.

Via o roubo como mal menor diante do projeto de tomada de poder pela ocupação das instituições, que ia além da briga eleitoral passageira. Resultava em regimes totalitários, perseguidores, criminosos e cheios de cadáveres como foram os regimes comunistas.

— A esquerda é porca — já disse mais de uma vez.

Donde vai se entender sua obsessão pela denúncia do comunismo, que seus fiéis viriam a macaquear sem entender a extensão. O comunismo, a seu modo de ver, não era a ideologia ultrapassada que assombrava os generais de pijama, mas um estado de ser, uma visão de mundo, o mais velho movimento de influência mental e cultural do projeto de esquerda mundial.

Até 2014, sua visão mais ou menos consolidada era menos a de política militante, do que a cultural que move o mundo pelas entranhas. 

Sua ocupação principal era a produção intelectual e o combate sem trégua ao que chamava de impostores da universidade, talvez até para tentar superar um mal resolvido complexo de não ter cursado filosofia, ser cobrado e ignorado por isso.

Estimulava seus milhares de alunos a produzir teses sobre temas proibidos e autores marginalizados pelo esquerdismo militante da burocracia acadêmica

— Procure e você não vai achar na universidade brasileira uma só tese que condene os assassinatos em massa dos regimes comunistas.

Como não acharia sobre Mário Ferreira dos Santos, um dos escanteados por essa academia, que reputava como único intelectual verdadeiro depois dele, especializado numa ferramenta indispensável e desconhecida da maioria dos pseudos que o escanteavam: o conhecimento de Aristóteles. 

Procurava provar que era muito superior a todos eles nos seus campos e além disso por dominar áreas, geográficas e mentais, que eles mal conheciam. 

Tinha uma arsenal mental intimidante sobre quase tudo em Ciências Humanas — História, Filosofia, Literatura, Antropologia e até Psicologia — e ia de fato além do eurocentrismo crônico dos pensadores brasileiros , com conhecimento mais do que enciclopédico sobre o Oriente e a formação dos impérios, russo e chinês, sobretudo.

Deixou 33 livros e participação em outros oito, 24 cursos digitais, 585 aulas online do seu curso de Filosofia com que catequizava seus súditos num tipo de missa semanal, sempre aos sábados à noite. Não estava no Lattes, plataforma de currículos que dá autoridade a pesquisadores e cientistas brasileiros, mas em citações e polêmicas mundo afora.

Pode se dizer que, até  2014, apesar da rejeição absoluta que lhe devotava a universidade, tinha construído carreira própria muito mais produtiva e influente que a de todos os seus críticos, consolidado respeito intelectual e influência incomparável fora dos corredores universitários.

O sucesso e a alta exposição, porém, iriam deixar patentes suas debilidades, seus defeitos e seus perigos. Tinha alta dificuldade para lidar com a política real, fora dos compêndios, a divergência, que tomava como ofensa pessoal, e suas tentações autoritárias. Golpistas, mesmo.

Por causa ou reflexo do sucesso que o fez explodir rápido nas redes sociais, ele passou a abusar de palavrões, agressões e teorias conspiratórias com sua verve implacável. Parte, estratégia para mobilizar sua manada e atrair cada vez mais seguidores e clientes para seus cursos. Parte, recalque mesmo. Parte, convicção.

Tinha um projeto sincero e antigo de não ter dó de adversário que pensa besteira. É impiedoso e intolerante já em O Imbecil Coletivo com a burrice. E sempre achou que fiéis da esquerda deveriam ser tratados a pontapés, porque apoiadores de regimes assassinos. 

A nova persona em que se transformou, vaidosa do novo papel público que exercia, ampliava seu séquito na mesma proporção em que afastava aliados mais sofisticados e velhos amigos, que não diferenciava dos inimigos no tratamento feroz.

Pesava muito a prepotência política cega para o que era, na verdade, inabilidade e uma ignorância absurda sobre o metabolismo dos interesses em jogo na geopolítica brasileira de então.

Levou sua manada a defender a deposição de Dilma Rousseff, não por impeachment, mas por uma sugestão de golpe militar. E muito equívoco e falta de perspectiva, desconhecimento total da conjuntura brasileira sobre a qual teorizava maravilhosamente nos seus cursos.

Arruinaldo Azevedo, como chamava agora o amigo que elogiara a coletânea, depois de uma briga de contornos judiciais por difamação, tem um vídeo notável de indignação cívica que expõe a tentação de golpe e a alienação dele e de seus seguidores: "vocês erraram".

Com a posse de Bolsonaro, ficou mais patente a impressão de que habitava outro planeta em relação ao universo de Brasília. Da indicação de ministros marcianos à máquina de ódio que cavalgou, mobilizou uma avalanche de ações equivocadas que criaram enormes problemas para o novo governo que pretendia ajudar.

A cada uma, ampliava as dificuldades de Bolsonaro com os demais poderes e o preço da barganha com o Congresso. Como quase um alienado com visão de republiqueta a partir de seu pedestal na Virgínia, defendia/pregava o fechamento do STF por Bolsonaro e os militares.

Esteve inequivocamente por trás da máquina de ódio e dos movimentos golpistas que acordaram o STF para o risco e fez seus ministros reagirem com aquele inquérito das fake news, tocado com mão de ferro por Alexandre de Moraes, escabroso mas indispensável à hora.

A maioria dos novos seguidores gostava da persona. Os mais bem informados tomavam esses arroubos como estratégias de atração de fiéis em sua luta por sua revolução cultural. Diga-se que seus palavrões ou ataques nunca substituíam o argumento, como ocorre nas mentes menores. 

Vinham ao cabo de longas argumentações, como em outro vídeo massacrante sobre a influência cultural africana, que considerava "nenhuma", em resposta a artigo de João Pedro Sabino Guimarães, na Época (É-porca, segundo diz):

— A universidade brasileira é uma organização cem por cento frau-du-len-ta.



Muitos dos mais sérios e intelectualizados de seus seguidores, empenhados no projeto comum de derrubar a desgraça petista, não viram ou não quiseram ver o perigo até a eleição de Bolsonaro, em outubro de 2018. Como Danilo Gentili ou Lobão, seguidor e amigo que, depois de contrariá-lo, viraria Lobostão.

A diáspora dos intelectuais e celebridades mais bem informados começa e se amplia depois da posse do novo presidente da República, nas provas do ódio e das ameaças golpistas que arregimentava.

Assim, foi do céu ao inverno nos quatro anos que vão da descoberta como o grande mentor intelectual da virada conservadora até sua desmoralização pelo desastre de sua intervenção no governo Bolsonaro. Por exacerbação de uma personalidade agressiva intelectualmente por convicção, mas também por vaidade e recalque.

Como sempre foi ignorado como referência intelectual pelo establishment universitário, cultural e midiático, acha-se pouco o que ler sobre seu legado. Até onde vai sua influência, o alcance e a duração das ideias que plantou?

Em que medida foi agente ou reflexo do inevitável, o movimento Vem Pra Rua, de 2013, as mobilizações pelo impeachment de Dilma e a campanha vitoriosa de Bolsonaro? Que por sua vez tinham sido inspirados por um mundo em desordem, atormentado pela Primavera Árabe tocada pelo Facebook, o Brexit e a eleição de Trump, seguida de outros extremistas de direita pelo mundo.

Foi reflexo, intérprete e catalisador de um estado de coisas que só encontrou nele a pessoa certa no lugar certo porque assim ele estava nos 30 anos anteriores. Não virou gênio e líder do dia para a noite.

Ele tinha uma tese compartilhada por uns poucos pensadores que admirava, de que as revoluções culturais levavam 30 anos para surtir seus efeitos. No Brasil, a dos militares dos anos 30 do século XX foi tomar o poder na revolução de 64, os professores infiltrados nas universidades em 60 começaram a ver seus efeitos no início dos 90, quando começa a sua rebelião solitária que iria denunciar um estado de coisas com fortes reflexos hoje.

Esperava formar uma elite intelectual que consolidasse suas ideias nos outros próximos em 30 anos. Achava ter conseguido mais do que esperava em se considerando seu pouco tempo na estrada midiática. Não esperava chegar ao poder tão cedo, como acabou chegando, inesperadamente, com Bolsonaro.

A chegada acabou avariando sua credibilidade e talvez atrasando o projeto, porque dispersou o grosso de sua militância, que deve se esvaziar mais com sua morte. 

Mas deixou um batalhão de discípulos influentes, em canais, sites e plataformas de peso, que vai dos mais histriônicos e simplificadores, como Allan dos Santos e Bárbara Destefani, aos mais sofisticados e de difícil contestação como ele: , a jornalista Paula Schmidt, a filósofa Bruna Torlay, o cineasta Josias Theófilo.

São prova de que sua filosofia ou sua doutrinação competente em torno de ideias em florescimento contribuíram muito para formar uma nova consciência. Sobre os delírios totalitários da esquerda que nos assombram a cada controle de fala ou sobre a ideia de que, sim, há uma vasta parte da sociedade de valores que não os apóia.

Não é difícil admitir que possa ter reflexos em 30 anos a ponto de criar uma nova hegemonia, de direita. Que talvez nem convenha. Mas ajudará a equilibrar o jogo e quem sabe levar o país ao caminho do meio: o da racionalidade, em que a realidade possa ser interpretada sem vieses ideológicos. Já será muito.

 

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