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Tragédias urbanas que se repetem todos os verões

Somos uma sociedade de inclinação repetitiva que se recusa ao gesto coletivo da indignação e da busca de soluções


postado em 09/03/2020 04:00 / atualizado em 08/03/2020 19:54

Omissão do Poder público permite a ocupação de áreas de risco(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
Omissão do Poder público permite a ocupação de áreas de risco (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

O gênio de Tom Jobim nos legou o alerta meteorológico da mais intensa poesia no seu verso: “É pau, é pedra, é o fim do caminho.... são as águas de março, fechando o verão”. Mas nossa proverbial imprevidência não nos permite resgatar o melhor da poesia que é o fato de ser ela, a própria palavra poiesis, sugestiva de criação, de transformação, enfim, de superação.

Teimamos em repetir. Repetir erros e omissões. E lá vem um novo verão, logo depois deste e, em seguida, tantos outros, com sua enorme contabilidade de mortos e desaparecidos, em tragédias urbanas repetitivas, porque somos uma sociedade de inclinação repetitiva que se recusa ao gesto coletivo da indignação e da busca de soluções.
 
O verão já vai acabar e o noticiário displicente e sedento de novidades velhas nos distrairá dos óbitos cuja explicação ficamos devendo nos mais diversos pontos do território nacional. São as famílias habitando aos milhões (sim, aos milhões) em áreas de risco, num país que tem a vantagem inicial de não ser vítima de condições climáticas ou tectônicas mais adversas.

Aqui não tem geleira desmanchando, montanhas explodindo em fogo e lava, ventos implacáveis, nem tsunami. Talvez por isso mesmo, tampouco temos aqui qualquer senso de precaução. O que temos são águas de verão, cuja manifestação pode ser de dezembro a abril como nosso “homem do tempo” Tom Jobim já alertara.
 
Então, daria para encarar a preparação prévia do homem e de sua cidade, não fosse pelos descaminhos da ocupação, posse e construção irregular de milhões de habitações onde jamais deveriam estar, porque são passagens marcadas das águas de março, Brasil afora. A omissão do poder público nessa orientação básica e fundamental – essa convivência crônica e consentida com o erro – é mais uma faceta da nossa inclinação para postergar os enfrentamentos.

Enquanto isso, o pobre construirá nos leitos secundários dos rios e nas fraldas instáveis das encostas, sem qualquer advertência ou coibição. E remediados e ricos farão parecido, apenas com mais reforço de sapatas, mas com o mesmo desprezo pela prudência.
 
Não faço uma constatação triste. Tristes são as estatísticas do desespero das famílias que precisam reconstruir tudo do zero, mas que não poderão resgatar quem partiu com paus e pedras rolados. Faço uma ressalva esperançosa. O Brasil, que um dia conheci totalmente dissonante em sua alienação, parece ir emergindo devagar do milenar torpor de sua tropicalidade. O país anda desapontado consigo mesmo.

As antigas desculpas, das perdas internacionais e das injustiças nacionais, que antes serviam para passar a mão na cabeça do brasileiro tonto e imprevidente, vão se transmudando em impaciência com administradores públicos venais e ignorantes, com fiscais descolados do interesse coletivo, com políticos de muitas promessas e nenhum compromisso. As águas de março prometem uma possível tempestade contra a política e os políticos convencionais em outubro, mês de eleger quem vai gerir as próximas enchentes, as próximas avalanches, os próximos aguaceiros.
 
Esse, no entanto, é apenas um aspecto da vida urbana. O mundo do futuro está ficando cada vez mais complicado. Os administradores do nosso coletivo estão ficando, portanto, cada vez mais ignorantes, mesmo que saibam mais, que tenham estudado mais, que tenham se preparado melhor.

É que o nível dos problemas também só faz piorar, no sentido de se tornarem mais complexos. É a lei a crescente ignorância relativa do homem. Jobim, na sua genialidade intuitiva, já nos alertava: “...é um belo horizonte, é uma febre terçã!” Aqui o belo horizonte quer dizer “vem coisa grande e cabeluda por aí” e, quanto à febre terçã, o poeta matou a pau: “é o coronavírus, minha gente”.

*Paulo Rabello é economista e escritor. Da terra do Tom Jobim

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