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Estado de Minas CENÁRIO BRASILEIRO

O vírus e o combate nas trevas

Apostando sempre no conflito, governo Bolsonaro vem se demonstrando fraturado, contraditório, ambíguo, irresoluto, ineficaz, sem rumo e um gerador vulcânico de crises com os outros poderes


postado em 30/04/2020 06:00 / atualizado em 02/05/2020 09:45

(foto: Presidente Jair Bolsonaro, sobre o aumento das mortes no Brasil pelo coronavírus:
(foto: Presidente Jair Bolsonaro, sobre o aumento das mortes no Brasil pelo coronavírus: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre" )

 

Esse artigo parte de um pressuposto realista: dos três poderes da República, o Judiciário,  representado pelo Supremo Tribunal Federal, e o Legislativo, pelo Congresso Nacional, guardam adesão, internalização de valores e compromisso com a democracia. Por palavras, gestos e atos, ainda que não isentos de ambiguidades e algumas extravagâncias, desde a promulgação da Constituição de 1988 testemunham e cotidianamente reafirmam a fidelidade à Carta Cidadã. 

 

Como se lê, o Poder Executivo não foi mencionado. Há uma forte razão para essa indesejada exclusão. Explica-se: no que concerne ao compromisso com a democracia, desde a posse do presidente Bolsonaro o Poder Executivo, considerada estritamente a presidência e a equipe ministerial, vem se demonstrando descomedidamente fraturado, contraditório, ambíguo, irresoluto, ineficaz, sem rumo, um gerador vulcânico de crises com os outros poderes. Numa palavra: ao invés de praticar a coordenação e um civilizado e apto construtivismo político da reciprocidade institucional, invariavelmente age com aposta no conflito, beligerância e propensão à ruptura. 

 

No poder, o atual governo parece enxergar os demais Poderes como constitutivos do chamado “sistema”, que Bolsonaro tem a obstinação de compulsivamente combater. Obstinação e compulsão negativas parecem indicar uma paixão pela aniquilação do “outro”, visto como inimigo. Na democracia, um Poder, em especial o Executivo, que responde pelo Tesouro, pelo comando institucional das Forças Armadas e, portanto, pelo monopólio legal do uso da violência, apresentar-se disposto a combater os demais é pelo menos um sinal de que não distingue governar de combater na borda do abismo. A que desdobramento conduz combater na borda do abismo? Ao combate nas trevas! Exagero? 

 

E os reiterados discursos bolsonarianos pró-AI-5 e em defesa da ditadura? E a presença do presidente no ato de 19 de abril, em frente ao quartel-general do Exército, no Dia do Exército, saudando e discursando para os manifestantes que lhe pediam “AI-5 com Bolsonaro” e “ditadura com Bolsonaro”, além de explicitarem ofensas ao STF e ao Congresso Nacional? Exagero? O presidente tanto olhou para o abismo, que o abismo olhou para ele, impregnando-lhe o psiquismo. Exagero?

 

Fratura, contradição e ambiguidade são patentes no fato reiterado de que o próprio presidente da República e pelo menos quatro ministros de estado têm, de grosseria em grosseria, decantado a defesa da ditadura militar de 1964. Mais que simpatia, manifestam a preferência por uma eventual edição de algo semelhante ao AI-5, de 13 de dezembro de 1968. São eles os ministros da educação, relações exteriores, cidadania, meio-ambiente e segurança institucional, além do secretário de comunicação e da assessoria direta ao presidente. Como o presidente, integram a chamada “ala ideológica” ou do “bolsonarismo de raiz”. Alguns, originariamente; outros, por adesão e internalização ou por cooptação e cálculo de oportunidade.

 

O presidente e o ornitorrinco 

 

Em plena democracia, ministros apresentarem-se em servidão voluntária em defesa do AI-5 fazem recordar o que se passou no dia 13 de dezembro de 1968, em reunião do Conselho de Segurança Nacional, quando, sob a ditadura civil-militar, o general-presidente Costa e Silva e praticamente todo o ministério aprovaram o AI-5. Na ocasião, o ministro do Trabalho, coronel Jarbas Passarinho, proclamou, condenando-se pela eternidade: “Às favas com os escrúpulos”. Sem ressalvas, aprovou a descida do regime autoritário às trevas. Delfim Netto, ministro da Fazenda, de fato o superministro da economia, à época, seguiu os passos do colega Passarinho e da vontade voluptuosa de poder. Passados 52 anos do fato e evidenciado o mal que a ditadura fez ao povo e à Nação, temos, nos dias de hoje, o superministro da Economia, o liberal bifronte Paulo Guedes, exibindo-se um cortesão do bolsonarismo. Por impregnação ou onipotência da vontade? Não sairá da biografia dele, jamais, a defesa do AI-5.  Como se vê, no Brasil habita o ornitorrinco, em Brasília: o liberal em economia e a reedição do “às favas os escrúpulos” pró-ditadura! Sob a ditadura, aquilo foi uma tragédia. Na democracia, haverá de registrar a História, madrasta dos homens, repete-se como farsa. Contudo, plena de ameaça.

 

Por falar em ressalva, faço uma. Alinhei o Poder Judiciário e o Poder Legislativo à democracia. Todavia, dadas algumas das suas práticas, pretéritas e atuais, e, no caso do Legislativo, a sua tão diversa composição, por prudência, ao compromisso com a democracia não associei o compromisso e a prática do republicanismo. Com efeito, a nossa democracia exibe um déficit descomunal: déficit de republicanismo. De modo inverso, exibe também um superávit assemelhado à abominação: a impregnação pelo patrimonialismo, às direitas e às esquerdas (vide, por exemplo, “mensalão”, do PT e do centrão; “petrolão”, do PT e do centrão; “quadrilhão do MDB” e, é claro, do centrão), mais as traficâncias do PSDB. No Judiciário, em especial, e uma vez mais no Legislativo, o gosto quase irrevogável pelo privilégio de casta na forma de remunerações que fazem do decantado “teto salarial” uma piada de mal gosto. Seja como for, para o bem geral da nação o Poder Legislativo, como instituição, patentemente pratica e renova o compromisso com a democracia. Contudo, no interior do Poder Legislativo, hoje, observa-se a exceção a esse compromisso: os parlamentares filiados ao “bolsonarismo de raiz”, desejosos, tanto faz, de democracia com Bolsonaro no poder ou de ditadura e AI-5 com Bolsonaro no poder. 

 

O bolsonarismo no governo gerou um outro ornitorrinco: no entorno palaciano do presidente coabitam um “gabinete do ódio” ou a quintessência do bolsonarismo de raiz, patentemente impregnado de “familismo”, um derivativo do velho patrimonialismo, e uma “ala militar” palaciana, povoada de generais e quatro estrelas. Tudo que o presidente Bolsonaro queria e quer, ele demonstra alcançar: confundir o governo e as Forças Armadas, como ele diz, as “minhas Forças Armadas”. Vale dizer, exibir as Forças Armadas ao mesmo tempo como instituição permanente do Estado, antes de tudo fiéis à Constituição, e as Forças Armadas no governo e com o governo, em clara manobra estratégica de cooptação. No Palácio e no governo, militar que manifesta reserva a essa tentativa de simbiose entre governo e Forças Armadas, não serve. Por isso o governo perdeu dois proficientes colaboradores: o general Santos Cruz, hoje fora do governo, e o general Floriano Peixoto. Deslocado administrativamente, tornou-se presidente dos Correios. Esse arranjo não dará certo. 

 

Com um presidente que não tem nenhuma noção de limite e sequer compreende, ou faz que não compreende, a distinção fundamental entre instituições de Estado, como as Forças Armadas e a Polícia Federal, e o governo, a resultante altamente provável seria a militarização do governo e a politização bolsonarista dos militares, eventualmente facilitada por oportunismo e ambições. A ostensiva presença militar no governo é como a caverna de Polifemo ou a caverna de Virgilio. Na primeira, sabe-se como entrar; nunca como sair. Na outra, caminha-se na escuridão e sempre em uma só direção: o abismo. É terreno minado. Mais um ornitorrinco gerado pelo bolsonarismo.

 

Exagero? Excesso de ceticismo? Apenas ceticismo da razão e nenhuma abdicação da paixão pela democracia e o republicanismo. Respondo ao risco de cometer exagero com mais um fato ou evidência, recente. Enquanto obtinha a desejada saída do ministro Mandetta do ministério da Saúde, em meio à epidemia em progressão geométrica, o presidente também tramava a queda ou a saída do ministro Sérgio Moro. Não bastasse, oferecia sinais evidentes de desagrado, desencanto e propensão a defenestrar o ministro da Economia, numa espécie de jogo do tipo “cai o rei de copas, cai o rei de paus, cai o rei de espada, cai, não fica nada”. 

 

A operação palaciana e conspiratória em marcha bolsonariana pretendia, de uma só tacada, livrar-se dos três superministros setoriais, já indesejados. Para o presidente, ministro publicamente prestigiado é ameaça à vista. Daí em diante, o presidente, redesenhando o governo, pontificaria para, ao exigir lealdade, obter servidão. Pois bem. Em contraponto ao ministro Paulo Guedes, deu voz e vez ao oportunismo de ocasião do ministro do Desenvolvimento Regional Rogério Marinho e seu “plano” de romper o teto de gastos e implodir a política de controle fiscal. Isso, em meio aos custos econômicos e sociais da epidemia, estimados, em orçamento paralelo de guerra, em algo da ordem de R$ 600 bilhões, com viés para R$ 1 trilhão, dinheiro novo inexistente no Tesouro e que somente está sendo obtido mediante a venda de títulos da dívida pública. Ou seja, elevando-se o montante da dívida pública, que, projeta-se, deverá alcançar perigosos 90% do PIB. Incontido, intempestivamente e de modo improvisadamente conspiratório o presidente projetou o ministro-chefe da Casa Civil, o general de quatro estrelas Braga Netto, à frente de um tão mal desenhado e concebido Plano Pró-Brasil, para, logo em seguida, deixar publicamente debitado o abortamento palaciano do Plano na conta do voluntarismo bem-intencionado do general. Na prática, ao invés de atirar em Guedes, que reagiu à altura, o tiro atingiu o prestígio do general, até então uma nova estrela em ascensão. Perdeu protagonismo, à maneira bolsonariana.

 

Com efeito, uma vez estabelecida a saída do ex-ministro Sérgio Moro do governo, os holofotes dividiram-se entre o embate Sérgio Moro-Bolsonaro e um novíssimo, que irrompeu em paralelo envolvendo o general Braga Netto, porta-voz e presumido coordenador do Pró-Brasil, e o ministro da Economia. Antes, o general tentara tutelar o ministro Mandetta, por óbvio não tutelável, por contraste com o sucessor, o emparedado ministro Treich, que até agora não se sabe a que veio. O ministro Paulo Guedes respondeu ao general com uma combinação eficaz de artilharia, cavalaria e infantaria: é repetição do PAC da Dilma, é inaceitável porque explode o teto de gastos e a política de controle fiscal. Pronto para sair, ficou, aparentemente prestigiado, enquanto Rogério Marinho, acusado publicamente de oportunismo por Guedes, desaparecia de cena para deixar a bomba do fracasso do ex-futuro plano estourar nas mãos do perplexo general. O plano do general ficou sem o fiador. Moral da história: todos contra todos, e todos ao dispor do psiquismo do presidente Bolsonaro! Governo ou serpentário? Ambições e descomedimento e atores no palco palaciano em busca de um personagem: eis como funciona o governo Bolsonaro.

 

Enquanto os fatos assim se sucedem, exibindo o delírio substituindo a realidade, o país superava a China em número de mortos e passava a projetar a próxima chegada ao patamar de 100 mil casos notificados, embora já se saiba que, em razão das subnotificações, os casos reais de contágio são da ordem real de dez vezes maior que o número informado oficialmente. Até o ministro reconheceu que formou-se uma tendência: como dizia Mandetta, a curva do contágio está crescendo exponencialmente e assim será nos meses de maio e junho. O contágio espalhou-se por todo o país.

 

Indagado sobre a proporção que a Covid 19 está alcançando no país, eis a resposta do presidente Bolsonaro aos brasileiros, dia 28 de abril, em frente ao palácio da Alvorada e na presença e em meio ao riso dos apoiadores: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre (...) Eu não falo sobre a questão da saúde”. 

(Como se manifesta a psicopatia? Toldada pela paranóia, ausência de compaixão, incapacidade de sentir o sentimento dos outros, ausência de empatia, ausência de culpa, perversão. Não necessariamente uma doença mental. Certamente um problema de caráter.)


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