Sísifo é um herói fascinante, o mais astuto dos mortais, o grande rebelde. Por suas paixões, ódio à morte e a paixão pela vida, enganou o deus Tânatos (a Morte) duas vezes. Logo, cometeu grande ofensa aos deuses. Morreu de velhice. Os deuses fixaram tormento eterno a esse herói trágico. Condenado ao inferno, a pena a ele imposta é mover enorme pedra montanha acima para, próxima ao topo, impotente, vê-la rolar montanha abaixo, pela eternidade. Impuseram-lhe obediência tão contrária ao amor humano! Para uns, o suplício de Sísifo representa o trabalho rotineiro e cansativo, sem esperança.
Compartilho outra interpretação. Apesar do suplício eterno, não há arrependimento na consciência de Sísifo. Há a consciência da escolha feita. Logo, ele se impõe ao que de outra forma seria “destino”. No sofrimento, triunfa sobre a própria maldição. Ele é, portanto, a própria imagem da esperança no mundo, um rebelde com causa até na danação eterna: consciência! Esse é o sentido do mito, trágico porque seu herói é consciente.
Meus heróis são Sísifo e Prometeu. Não tenho um herói na educação. Melhor, tenho vários: diretor(a)-líder; professores estudiosos comprometidos com o alto aprendizado de todos os seus alunos; alunos empenhados em aprender. Fraternalmente, exerço a crítica ao educador infantilizado, aquele que se julga vítima de alguma coisa e não assume razoavelmente as responsabilidades por seus atos. São altas exigências, sim. Pois em nosso país a escola pública é a última fortaleza da esperança da maioria, que é pobre, para conquistar cidadania e elevação civil, equidade social, em reciprocidade desfrutando de respeito, tolerância, civilidade. Ou na escola pública floresce a igualdade de oportunidades, ou colheremos quimera. Destino?
Ocupo-me do diretor de escola. Apelo ao craque Tostão, o melhor analista de futebol de todos os tempos, e dele recolho, como metáfora, os conceitos analíticos que utiliza para descrever como floresce o craque. Aplica-se ao diretor de escola: técnica ou os fundamentos da posição e lucidez decisória; habilidade ou o domínio da liderança; criatividade ou inventividade no sentido de visão antecipatória, capacidade de surpreender a comunidade escolar.
Segue-se o jogo sendo jogado, a escola em funcionamento no dia a dia, as vitórias e as agruras do dia a dia (todos os alunos aprendendo o que se espera que aprendam segundo altas expectativas) ao longo de cada ano escolar. Diretor craque não é o eleito pelo voto escolar; é aquele que pelo mérito forma a própria trajetória de liderança. Mesmo que haja eleição, antes passa pela prova do mérito e o confirma continuamente. Tudo isso associado ao testemunho dos valores e sentimentos e à maturidade emocional, forma o talento, o craque, o grande diretor de escola pública.
Em nosso país, ele ainda convive com situações de variada escassez de meios e de apoios. Registro: a educação escolar sem a educação dos sentimentos é como, em Paulo, a fé, a esperança e a caridade sem o amor: vazios de sentido humano.
As habilidades: capacidade de estabelecer relação de cooperação com a Secretaria de Educação, articular-se flexivelmente com a comunidade de vizinhança e os pais, transformar tensões em resoluções pela lúcida mediação e capacidade decisória, legitimar a liderança no dia a dia pelo testemunho e pela capacidade argumentativa e de orientação geral à escola, e mais a coerência razoável ao fazer cumprir contratos, acordos, o projeto pedagógico e as metas de progresso da escola (aprendizado dos alunos). É o construtivismo da vida em comunidade, com coragem moral e alma.
A formação cultural contínua é essencial, compreendida a cultura como uma capacidade de orientação geral. Fundamentos, habilidades, cultura e valores orientam o diretor na orquestração colegiada e por ele liderada da organização da escola como ambiente saudável de aprendizado. Em meio às tensões da vida como ela é, as resoluções mais ou menos consensuais, o compromisso, a responsabilidade individual e coletiva, a vivência em ato dos valores que a escola celebra como norte da formação ética cimentam a amizade.
A boa execução do projeto escolar, planejamento e monitoramento, avaliação de processos, formação continuada, gestão da informação educacional, metas e seu cumprimento e a gestão fina da escola formam o pão nosso de cada dia. Disso resulta o bom clima escolar: relações de reciprocidade ou trocas culturais e sociais e afetivas, coesão, maturidade relacional, compromisso. Fortalecem a prática da equidade, coordenação e eficácia. O imponderável ou o acaso será companhia agradável pois a incerteza da vida e as ideias e o planejamento, como diz Tostão, potencializam um ao outro.
Dizem crenças antigas que avalia-se a escola somente pelos resultados! Será? Na escola, insisto, resultados são parte da equação: a trindade justiça = coordenação = eficácia e = coesão => resultados. Porém, de que resultados estamos falando? E aqueles que não ainda não sabemos “medir”?
Sobre resultados, temos um problema. Ministério e secretarias e especialistas são sofisticados para avaliarem o aprendizado focado em conhecimentos, competências e habilidades curriculares. Contudo, o que sabem dizer sobre: diretor e professores que acolhem as meninas adolescentes grávidas e rejeitadas pelas famílias, ou os alunos envolvidos ou ameaçados pelo tráfico de drogas e libertos disso pela ação da escola, ou o fato demográfico da escola acolher alunos cuidados por avós e que desconhecem quem é o pai biológico, ou o fato de que a maioria das famílias “entrega” toda educação dos filhos à escola, ou no dia a dia o diretor atender mães de alunos em desespero existencial, em improvisadas sessões de “psicanálise”?
Trabalho de diretor(a) de escola: “Trabalho de Sísifo”? A resposta é sim: são semeadores de esperança na ação. Que Sísifo os proteja e Prometeu os encoraje.