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Estado de Minas DIVERSEM

E eu não sou uma mulher? A bestialização da mulher gorda

''Ao dissidir do que é magro e padrão, somos colocadas numa situação de não humanidade''


07/07/2021 04:00 - atualizado 07/07/2021 14:05

''A estrutura desigual ignora a subjetividade de tudo que não é mulher magra, branca, cis e reverbera, se debatendo, novamente, com as tecnologias opressivas''(foto: Thito Fonseca/Divulgação)
''A estrutura desigual ignora a subjetividade de tudo que não é mulher magra, branca, cis e reverbera, se debatendo, novamente, com as tecnologias opressivas'' (foto: Thito Fonseca/Divulgação)

Nunca o discurso da ativista abolicionista Sojourner Truth foi tão atual e urgente. Neste ano, não diferente de outros, tanto no Dia Internacional das Mulheres como no Dia dos Namorados, fui obrigada a ler não uma, mas muitas vezes, nas timelines de diferentes amigas, em diferentes redes sociais, que todas elas desprezam as rosas endereçadas por afetos em razão da data e trocam as mesmas por respeito. Fiquei triste e pensativa, afinal, sendo eu - ou será que eu não sou uma mulher? - uma mulher num corpo gordo, é difícil que receba flores.

Quando é dito: todas as mulheres estão fartas e cansadas das flores que recebem nas datas comemorativas, estão falando, necessariamente, de quem e por quem? Como eu poderia estar cansada de algo que nunca existiu na minha vida?

Essa afirmação não é ilustrativa ou para chamar a atenção para o texto. Esse marco assertivo e recentemente muito trabalhado pelo feminismo força a percepção de que não existe essa universalidade que nos é propagada, permitindo que as violências estruturais emerjam e borbulhem a partir daí.

Eu nunca recebi flores e isso escancara uma diferença imensa entre mulheres. As datas podem ser internacionais, mas não são universais e penso que respeito seria não ser agredida cada vez que saio na rua. E quando digo agressão, afirmo que levo cusparadas, me atiram pedras, gritam comigo, se encolhem de nojo quando sento em algum banco próxima a outras pessoas ou disputo o mesmo espaço no elevador.

Eu não sou uma mulher?

E eu nunca recebi flores no 8 de março. Nem no 14 de fevereiro. Nem no 12 de junho. Ou em qualquer outro dia. E também não tenho direito de existir. Então, quando pautamos o 8M e/ou a recusa de afeto e amor romântico de uma data comercial como o Valentine's Day ou o Dia dos Namorados, estamos falando de quais corpos? E de qual respeito? Da opressão patriarcal, ou da nossa própria, que ignora as subjetividades e a multiplicidade corporal?

E eu não sou uma mulher?

Quando pedimos mais respeito, estamos implorando aos homens para que não assobiem quando passamos na rua, mas incitamos, diariamente, que estes mesmos homens cuspam em corpos que são como o meu: bestializados.

E cabe a pergunta: por que o corpo da mulher gorda é bestializado? E porque deduzimos que corpos magros e padrão não querem mais flores, então, tudo bem que uma mulher gorda não receba um único ramalhete num dia em que um chefe qualquer, de uma empresa qualquer, resolva ser gentil.

No discurso de Sojourner Truth, bem trabalhado posteriormente por bell hooks, ela pontua, cirurgicamente, a necessidade da interseção entre as mulheres, seus temas e suas demandas, mas, desconfio que aprendemos muito bem a lançar mão do discurso, porém, na prática, ignoramos o que, de fato, está sendo dito ali.

Em seu livro, bell hooks reforça a ideia de que não devemos deixar nenhuma mulher para trás. Na prática, entendo que não são deixadas. A menos que sejam mulheres gordas e que não consigam caminhar na mesma velocidade que as mulheres magras, com os mesmos dedos em riste, apontando o que deve ou não ser feito.

"Quando é dito: todas as mulheres estão fartas e cansadas das flores que recebem nas datas comemorativas, estão falando, necessariamente, de quem e por quem? Como eu poderia estar cansada de algo que nunca existiu na minha vida?"



E antes que me joguem pedras ou me acusem de incitar uma olimpíada de opressões, destaco que entendo, obviamente, as questões que estão colocadas com o pedido da troca das flores por respeito, mas, podemos entender as rosas como desrespeito e brigar pelo mesmo quando elas são destinadas a apenas alguns tipos de corpos?

O que aprendemos, afinal, sobre interseccionalidade?

Acreditamos mesmo que vamos derrubar o patriarcado usando as mesmas armas de opressão e distinção?

Bradamos por mais vozes de mulheres nos mercados em que atuamos e tornamos coletivos os nossos incômodos pessoais, sem ouvir o que gritam tantas vozes dissonantes das outras mulheres.

Rejeitar flores e tomá-las como desrespeito, tornando isso público como a única forma de luta possível entre não-homens traz, ao contrário do que se pensa, uma fenda ainda maior na luta pela igualdade de direitos.

A estrutura desigual ignora a subjetividade de tudo que não é mulher magra, branca, cis e reverbera, se debatendo, novamente, com as tecnologias opressivas.

Eu estou aqui, 170 anos depois, gritando a mesma pergunta de Soujourner Truth: eu não sou uma mulher?

E veja bem: eu sou uma mulher branca, cheia de privilégios. E eu nunca recebi flores no Dia Internacional da Mulher. Nem no Dia dos Namorados. Nem em dias quaisquer. Nem um pedido de desculpas. Nem um olhar carinhoso para as pautas que estou levantando. Nem a escuta para as demandas que estou berrando. E as minhas mãos estão soltas. Não tem nenhuma irmã, com sua sororidade, a segurá-la. E, se eu não sou uma mulher, por que seria tratada como tal?

Por aqui, até a opressão patriarcal é diferente. Eu não sou tratada como uma mulher, mas como uma besta. E o que merece uma besta?

Nenhum homem me trata como mulher, afinal, estou presa na desumanização que o corpo gordo provoca socialmente. Adjetivos como porca gorda, baleia, nojenta, preguiçosa, doente, rolha de poço, entre outros, dão lugar ao pedido de desculpas pela masculinidade em forma de flor.

A sororidade dá lugar ao pedido de: não enviem flores, enviem (insira aqui o objeto, comida, desejo de sua preferência).

Com seus discursos de falsa preocupação com a saúde e blá-blá-blá, que eu não aguento mais ouvir e nem repetir, convenhamos, vão dizer que não é bestialização dos corpos gordos e que, seria eu sim, uma mulher, veja bem, se eu me cuidasse, não comesse tanto, ficasse mais calada sobre estes temas, me comportasse melhor e fosse magra.

Em outubro de 2019, assisti a mesa “Oxe! E acaso a gente não é mulher?” na Festa Literária das Periferias (Flup) no Rio de Janeiro (RJ) em que Akuenda, uma transfeminista anti humanista questiona o fato de consumirmos animais, bestializando-os, quando o mesmo foi feito, por muito tempo, com pessoas pretas.

Minha pergunta para este século é: por que naturalizamos a bestialização das mulheres gordas e celebramos isso?

Ao dissidir do que é magro e padrão, somos colocadas numa situação de não humanidade, entendemos que o humanismo é uma tecnologia que coloca meu corpo em um lugar de violência nefasta, dialogando com a violência, com o silenciamento, com o exílio, com o genocídio, com o extermínio.

Para as mulheres, todas estas minhas amigas que recusam flores no dia de hoje, eu até poderia dizer que juntas, podemos muita coisa, como derrubar o patriarcado, virar o mundo de ponta cabeça, conceber milhares de universos possíveis e mais igualitários, mas, temo que isso nunca aconteça, afinal, não estamos juntas.

E no final, nem é que eu queira um pedido de desculpas dos homens ou a atenção masculina, mas talvez as flores, para recusá-las também e, quem sabe, a partir daí, me sentir também uma mulher?

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