(none) || (none)

Continue lendo os seus conteúdos favoritos.

Assine o Estado de Minas.

price

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Assine agora o Estado de Minas por R$ 9,90/mês. ASSINE AGORA >>

Publicidade

Estado de Minas HIT

Ministra Cármen Lúcia assina o primeiro artigo da seção 'Qual é a música?'

A partir de hoje, a coluna HIT publica textos de convidados sobre canções lançadas durante a ditadura militar que dialogam com o Brasil contemporâneo


04/07/2021 04:00 - atualizado 04/07/2021 11:13

A partir de hoje, a Coluna HIT publica aos domingos a seção “Qual é a música?”. A cada semana, um convidado escreverá sobre canções marcantes lançadas durante a ditadura militar no Brasil.


QUAL É A MÚSICA?


“Pesadelo” (1974)
De Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós

“Mordaça” (1974)
De Paulo César Pinheiro e Eduardo Gudin


Pesadelo e sonho

Cármen Lúcia Antunes Rocha
Jurista, ministra do Supremo Tribunal Federal

Pinguela é passagem larga para quem vê água demais em tormenta que parece capaz de tragar corpos e almas. Medos e esperanças de travessia que conduz a outro sentido de vida: a que seria – quem sabe – a soma das felicidades. Ponte é precisão em tempos de ares e águas revoltas a fazer tremular os pés e as vidas.

O radinho de pilha ficava escondido sob um travesseiro cuidado em quarto monástico de internato de freiras: “quando um muro separa uma ponte une”. O silêncio religioso comungava com os ares de um tempo de palavras medidas. A mordaça parecia não calar apenas sílabas; emudecia emoções e aspirações. Liberdade era borboleta foragida. Vislumbrada como verdade única na qual valia a pena crer: “você vem me agarra, alguém vem me solta; você vai na marra, ela um dia volta”. Para além do muro, esperanças de liberdades... “Que medo você tem de nós!”

Tempos brabos aqueles, de olhares baixos, pestanas cerradas, sentimentos mudos. 1972 não era tempo de notícias, mas de sobrevivências. Para quem não via, apenas espreitava; nem entreouvia, pegava no ar, a liberdade continuava batendo asas nas janelas sempre fechadas. Mas o roçar de asas da imaginação e do desejo borboleteando cantava nas músicas do radinho, aconchegando pequenos regalos sonoros nas dobras do travesseiro. Se as redações em sala de aula eram censuradas, imagino as palavras dos poetas: “você corta um verso, eu escrevo outro; você me prende vivo, eu escapo morto; de repente, olha eu de novo... que medo você tem de nós, olha aí...”

Alguém ouvia, alguém cantava, apesar dos pesares. E nem eram poucos. Nunca são, aprendo agora: “olha eu de novo...”

Foram difíceis e custosos aqueles momentos. Demorou o que parecia eternidade. Mas depois vieram tempos de cantares abertos, praças plenas de cores, o céu só outono com primavera democrática chegante. Todo mundo de espelho na mão, reverberando-se democraticamente livre: “vê, estão voltando as flores”. Teimosas, sempre insistem em voltar. A liberdade é pirracenta: volta sempre, nega-se a desistir. Mas vai ver esquecemos outro alerta de Paulo César Pinheiro:

“se não te cuidares o corpo,
cuida teu espírito torto,
que teu corpo jaz perfeito...
se não te cuidares, cuidado
com as armadilhas do ar
qualquer solto som pode dar tudo errado”

A liberdade persiste em sua vocação, alça-se comprometida com os ventos de todos os tempos, todos eles são seus. São seus os tempos dos homens, de todos os lugares, de todos os matos e matizes. Acho que não veem a liberdade os que são cegos a ares, mares, travessias libertas: “o muro caiu, olha a ponte, da liberdade guardiã... abraça o dia de amanhã... Que medo você tem de nós, olha aí...”

Tempestade não mata primavera nem intimida voo... dificulta um pouco a subida, faz ponderar melhor a rota, mas a ponte sustenta o passo, relança o humano à sua aventura de ser livre e avesso a muros que separam. Somos seres de união livre e eterna: ergue muro quem tem medo do outro. Ou, quem sabe, de si mesmo: “olha eu de novo...”.

Não foram tempos amenos aqueles das noites com radinho colado no ouvido. Medo da descoberta da música que acalmava e acendia no escuro solitário e friorento daquela juventude. Não foram horas fáceis. Nem sempre são. Mas a vida não é fácil; é apenas boa e curta. Deve ser por isso que construímos pontes: para estar com os outros que também passarão por elas. E serão mais felizes por ter sido feita antes a travessia dos piores tempos. Eles passam e os que infelicitaram os outros nesses momentos, também.

Pesadelo acaba, são os sonhos de liberdade que ficam. Eles nunca silenciam. Há que insistir: cala a boca já morreu; só a liberdade não se deixa morrer. Uma ponte eterna nos une: “você corta um verso, eu escrevo outro...”.

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)