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A pandemia sob o olhar do menosprezo. O vírus ignorado pela soberba

No Diário da quarentena, que chega à reta final, Odette Castro revela como o seu olhar sob a pandemia mudou


05/10/2020 04:00

Diário da quarentena

A vida não espera

Odette Castro
Bióloga

A pandemia me pegou num processo de luto. Fazia pouco tempo da partida da minha filha e nenhuma quarentena seria capaz de ser mais cinza do que meu dia a dia.

Então, menosprezei-a. Olhei para ela com aquele olhar esnobe, soberbo. Que prepotência é essa de uma pandemia ter sobre mim um efeito maior do que a minha dor?

Nem o medo real do vírus me metia medo.

E assim, de uma forma blasé, começamos nossa quarentena. Eu, a pandemia e minha indiferença.

O lavar as mãos, o álcool em gel, a TV ligada dia e noite, o desinfetar as comidas eram só detalhes.

Acontece que gosto de gente e por gente nutro grande interesse. Então, comecei a ver gente através das redes sociais, ouvir gente cantar com gente através das lives e desembrulhar gente como se desembrulha um presente. Muitas tinham muitos papéis duros, amassados, e até chegar no colorido era um verdadeiro descascar cebolas. Outras já carregavam somente um leve papel de seda, e algumas já chegavam com laço de fita.

Meu olhar parou naqueles embrulhos mais frágeis, que trincaram com os solavancos da vida, e percebi que era chegada a hora de sair do meu ego pandêmico e enxergar o outro. E foi aí que vi a importância da vida e da nossa responsabilidade sobre vidas, porque vidas importam.

Eu me vi viva e que já era urgente levar vida ao próximo, porque está escrito que todos merecem vida e a tenham com abundância.

E foi aí que ouvi a Ave Maria pela janela do meu prédio.

E foi aí que vi o papa sozinho no meio do nada, rezando por nós.

E foi aí que vi padre Julio Lancelotti dando pão a quem tem fome e água a quem tem sede.

E foi aí que vi que a despedida de uma pessoa querida, sem abraços dos amigos queridos, dói mais.

E foi aí que ouvi um desastrado: "E daí?".

E foi assim que se passaram sete meses.

E foi assim, com passos trôpegos de uma criança que começa a andar, que saí de casa pela primeira vez,  que vi a rua.

Eu tive medo da vida que vi pelas ruas.

Eu tive medo dos desmascarados e de quem chegava mais perto de mim.

Eu tive medo da palavra "aluga-se" que se juntou à decoração das lojas e restaurantes.

Eu tive medo do "passa-se o ponto" em frente a escolas tradicionais.

Eu tive medo de a morte ser só uma morte, mesmo que sejam 140 mil.

E foi então que me lembrei de que tenho o crochê e com ele faço flores coloridas e coloco nas árvores para enfeitar a cidade.

E foi aí que me lembrei de que posso contar para as pessoas tudo que aprendi com minha filha, que tanto soube de exclusão e nunca se abateu.

E foi aí que me lembrei de que solidariedade nutre nossa vida e não só alimenta o outro.

E me lembrei de que continuo viva e não vou levando a vida por levar. Eu vou vivendo a vida, sem tempo para o desamor, porque amanhã posso virar estatística.

Ainda estou viva, tentando viver a vida com mais significado pela filha que se foi, pela filha que está comigo, pela neta que me floriu, por todos nós, pelo Brasil despedaçado.

E todos os dias eu acordo com medo e com fé. Tomo meu café e me cochicho: Avante, Odette! A vida não espera.

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