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Estado de Minas Coluna Hit

Bruna Kalil Othero: 'Nossa catástrofe é o Brasil'

A escritora e mestra em literatura brasileira é autora de mais uma página do 'Diário da quarentena'


30/08/2020 04:00

Diário da quarentena

Diário da casa assassinada

Bruna Kalil Othero
mestra em literatura brasileira

Sinto que vivi toda a vida à espera de uma catástrofe. Agora ela chegou.

dia 0 ao dia 10
esquecer que tenho corpo. não pensar, não racionalizar. evitar as notícias.
a pia da cozinha quebrou. escrevi um poema e hidratei o cabelo.
fiz terapia on-line e pão. montei a pirocona da Tarsila no quebra-cabeça. vi Os normais. e agora vou ler Lúcio Cardoso.
a Hilda me disse que sou abstrata. que não reclamo exatamente do que me incomoda, mas falo assim: barulho. em vez de dizer: latido do cachorro, vozes da casa, da rua.

dia 11 ao dia 40
sinto fúria, raiva, da ignorância e da prepotência. tacar fogo em tudo inclusive em mim etc.
hoje é dia mundial da poesia. e também aniversário do presidente. não se pode ter tudo.
não estou conseguindo escrever nada. lá fora todos morrem.
a doutora disse que a tensão que sempre pensei inerente ao meu corpo e à minha própria identidade é, na verdade, uma doença.
sinto saudades da rua. Paulo disse que é a parte principal da cidade. concordo, melancólica, cavando a minha pá fundo na terra.

dia 41 ao dia 60
decidi que vou escrever meu testamento e instruções para como quero que seja o
meu velório.
depois de quarenta dias, me toquei pela primeira vez. bendita é a tranca no quarto, posso ter tesão a qualquer hora. Virginia Woolf já sabia.
penso que tudo seria mais fácil se eu fosse um personagem. a morte como recurso narrativo faz sentido. mas como política pública não.
dia 19 é aniversário da Lygia. comprei
uma faca pra ela.
             tempo. agora mais que nunca
             um conceito abstrato.
escrevo por recomendação médica.

dia 61 ao dia 80
a pior coisa é se sentir exilada na própria casa. na própria pele.
chorei sozinha no banheiro. primeiro no chão, depois no banho. já faz parte da rotina.
às vezes sinto que é difícil pra Lygia – me amar.
a terapeuta me disse que sou cruel demais comigo mesma. como não ser?
sair do campo de batalha. só isso que eu queria.

O CORPO É UMA BOMBA RELÓGIO.

cansada. com medo. produzindo para não pensar. o artista brasileiro cria obras com uma arma apontada para a sua cabeça. é compreensível que no papel haja sangue.
antes eu via vários futuros possíveis, com clareza. hoje não consigo pensar nem no amanhã.

dia 81 ao dia de hoje
estar viva. respirar. existir. dar conta
desse milagre.
me indago sempre: qual é o desastre? pensei que era a pandemia. mas não é.
nossa catástrofe é o Brasil – casa eternamente assassinada.

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