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Na pandemia, o tênis da moda não importa, nem o carro do ano

Regina Bertola, do Grupo Ponto de Partida, garante que revisitar a memória, recuperar receitas e escutar o outro ajudam a enfrentar a falta de perspectiva na quarentena


23/07/2020 04:00

Diário da quarentena

Um jeito novo de respirar
Regina Bertola
Diretora do Grupo Ponto de Partida

De repente as portas se abriram, para dentro. Estávamos em casa, olhos atônitos, sem entender bem o que se passava lá fora. Vai passar, pensávamos! Mas não passou. O que passavam eram os dias, todos com cara de quarta-feira.

A vida frenética de acorda cedo, come qualquer coisa, leva menino para escola, fala no celular, corre para o trabalho, resolve os detalhes da reunião no trânsito, olha o WhatsApp, responde o que dá, nem lembra de cumprimentar as pessoas, almoça fazendo reunião, disfarça conferindo o WhatsApp, corre para o shopping, tem show a noite, leva as crianças para a aula de balé, de futebol, de natação, de inglês, de reforço, fala no celular enquanto leva os meninos para casa, confirma o encontro com os amigos, manda uma última mensagem para adiantar o trabalho no outro dia, passa no supermercado, vai acabando de se vestir no caminho, assiste o show tirando fotos e filmando tudo, sem sentir nada, sai para jantar, fotografa os pratos, as pessoas, o vinho, remarca a academia enquanto espera pela sobremesa, dorme na volta para casa. Quase não se consegue respirar. Lá se vai mais um dia de vida. Vida? Será? De repente essa vida não existe mais.

Existe uma condição de sobrevivência que nunca se apresentou, que é preciso entender, enfrentar, inventar. Um jeito novo de respirar. De repente as portas voltam a se abrir, para dentro, de nós mesmos. É quase um desconhecido que mora lá, mas que aos poucos começa a se mostrar. Reconheço amigos de infância que nem sabia que existiam comigo, sinto beijos que haviam se perdido, desembrulho sonhos que só dormiam, passo a ferro dobras da minha alma.Dentro há um silêncio sólido que me abre a escuta e uma altitude de montanha que me obriga a reaprender respirar.

De repente o tênis da moda não importa tanto, nem o carro do ano, nem as viagens que não posso fazer, nem as centenas de atividades que não se oferecem mais. Fazem falta as canções, as palavras, as imagens, as histórias, os encontros, o outro. Ajuda enfrentar a falta de perspectiva revisitar a memória. Recuperar antigas receitas, amassar o pão, dividir os segredos do ponto do doce, trocar sabores. Respirar. Os cheiros, a noite, os ventos, a vida. Conversar longamente, consolar, escutar. Respirar. Olhar. Aprender.

É fato que não existem fronteiras e que ou nos salvamos juntos ou morremos juntos. Que o planeta e a vida estão ligados “com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda”, como diria o poeta. Que somos uma comunidade humana e que o outro me oferece identidade e propósito. Que a economia, portanto, tem que ser revista para estar a serviço do bem-estar de todos os homens e não apenas de alguns. Que a saúde é dever e responsabilidade de todos, mas principalmente do Estado.

Que a ciência existe e é operante. Que a beleza humaniza e é fundamental. Que os preconceitos são mortais, como os vírus. Que viver é muito mais do que cumprir um papel. Que solidariedade, compaixão, liberdade, respeito, delicadeza são muito mais do que palavras. Que a arte e a cultura não são a cereja do bolo, como afirmam os equivocados, mas o fermento que lhe dá forma e sabor. A receita/memória e os desejos/ futuro de um povo.

De repente as portas se abrirão, para fora. Precisaremos escolher que vida queremos retomar, com que palavras continuaremos a história, se nossos braços serão capazes de envolver os homens e o planeta num único abraço, se afinal reaprendemos a respirar.

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