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Estado de Minas COLUNA HIT

Nestes tempos de falta de ar, discos e livros aliviam a barra

No 'Diário da quarentena', o poeta João Gabriel revela sua rotina nos dias de isolamento social, dividida entre música, filmes e um novo projeto literário


postado em 22/06/2020 04:00 / atualizado em 21/06/2020 16:40

Diário da quarentena

Respiração em dois atos

João Gabriel
Escritor e poeta

Ando respirando mal. À noite, antes de conseguir pegar no sono, e na primeira hora da manhã, quando tudo ainda é muito confuso, respiro mal. Encho primeiro o peito, depois a barriga, puxo todo o ar da atmosfera e, mesmo com o tanque cheio de oxigênio, estou sufocado.

Tenho, todas as noites, o mesmo sonho. E esse eco do desejo, do prazer, da pressa, da      constatação, do constrangimento, diariamente repetido, me faz não saber o que é realidade ou fantasia quando acordo. Memórias do sonho me vêm e demoro uns segundos até entender qual a distopia certa, a que vivo de verdade. Por isso, começo o dia respirando mal.

Quando a confusão parece se dissipar lentamente, a realidade se impõe, como um balde d’água na cabeça. São shoppings abrindo, espe- culações sobre o próximo jogo de futebol, festas, pessoas se reunindo para ver o pôr do sol. O constrangimento que sinto nessa hora, você já deve imaginar, não deixa a respiração se ajeitar.

Começo a ficar aflito, ansioso, e tento me concentrar, achar alguma razão, me acalmar. Pego o celular e ligo o cronômetro. Dezessete respirações em um minuto, tudo certo – pelo menos de acordo com um artigo que li no Google, que dizia que o normal eram 16. Assim, quando a confusão parece se dissipar lentamente, a realidade se impõe. Desta vez, como um tapa na cara.

Generais falando em puxar a corda, pessoas comuns atentando contra a democracia em favor de aproveitadores e o presidente, sem nariz de palhaço, fazendo piada em frente à pilha com milhares de mortos na frente do Palácio da Alvorada. Aí, não me aguento, vou pra janela e acendo um cigarro, que é pra respirar mal com gosto.

E nessa hora, sem ter pra onde correr, começo a tentar me distrair. Enquanto arrumo o quarto, ligo um disco de qualquer Chico, o Buarque ou o César, e começo a cantar. Se for dia de lavar banheiro, melhor, porque canto o disco inteiro. Chico tem sido fundamental nestes tempos sombrios.

Começo um livro novo, separo meus escritos, almoço, leio poesia, procuro um filme ou uma série, posto um poema na rede social. De uma hora pra outra, o dia passou. Correu na minha cara, gritou meu nome e eu não vi. Pro bem e pro mal, esse costume das horas, dos minutos, deixa tudo mais calmo no começo da noite.

Pode-se dizer até que me divirto nessa hora. Porque se a opinião oficial é tão vil, rasteira e muitas vezes criminosa, a contraoficial, por assim dizer, é uma delícia. Os textos, os vídeos, as charges e tantas outras obras feitas para questionar a oficialidade boçal que se impõe mostram que não estou, não estamos sozinhos. Desanuviam.

Deito para dormir, mas sinto um susto quando percebo minha respiração normal. Porque dentro de casa é tudo mais fácil. Com um livro novo, escritos pra separar, almoço, poesia e todos os meus privilégios, fica mais fácil. O pipoqueiro, a faxineira, o entregador não têm essas minhas opções. Foram escravizados para o meu conforto. Vai tudo voltando, se acumulando em mim, pedaço por pedaço, e o ar vai se tornando, a cada segundo, mais pesado. Mesmo assim, tento pensar em outra coisa, enumerar nomes, contar carneirinhos.

E quando a realidade começa a se dispersar lentamente, o sonho se impõe, como um raio que cai sempre no mesmo lugar. Estou correndo, apressado, tenho que encontrar alguém, explicar uma coisa, chegar a algum lugar. Começo a reparar nas pessoas e a maioria não usa máscara. Penso em discutir, falar umas verdades pra cada uma delas, mas quando começo a brigar, sou eu, na verdade, quem está sem máscara.

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