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Estado de Minas FILOSOFIA EXPLICADINHA

Botox e o efeito colateral: crise existencial na fila preferencial

De um lado, o direito conquistado. Do outro, a confissão para o mundo (inclusive a própria vizinhança) de que não era mais uma mocinha aprendiz de piano


30/04/2023 04:00 - atualizado 30/04/2023 09:59
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A vaidade seria uma virtude ou um pecado?
"Vaidade" Helios Seelinger - óleo sobre tela 1950 (foto: https://www.flickr.com)

A beleza salvará o mundo, disse Dostoievski pela voz do Idiota. E talvez seja isso mesmo que falta entre nós. Tudo bem que o passar dos anos é mais cruel para alguns e benevolente para outros. Faz parte. Tudo é aleatório e indeterminado, fruto da loteria genética. A única coisa certa nessa vida é a fome que o diabo nutre pelos vaidosos. Esses sim, sempre escolhidos como prato principal. Como disse Balzac, “deve-se se deixar a vaidade aos que não têm outra coisa para exibir”.

 

Aquele era um domingo de sol, e eu devia me arrastar até a urna, cumprindo meu nobre dever patriótico de escolher o próximo presidente para a associação de bairro. Meu filho percebia em meus olhos a minha preferência por jogar futebol. Tentou me consolar:

- Papai, ao menos nessa eleição você pode tomar sua cervejinha depois. Estamos perto de casa, não precisa dirigir
.

O menino me conhece mesmo, sabedor dos costumes que passamos de geração em geração: guardar o domingo para o sagrado ofício do ócio etílico.

 

No meio de todo esse gesto de cidadania entediante, captado pela fundamental desimportância que pairava naquele lugar, fui tomado por uma cena que salvou aquele dia macabro, digna de um texto do bom e velho Nelson Rodrigues: a chegada de uma mulher, no auge de sua maturidade tardia, tentando esconder que a velhice faz mais rugas no espírito do que na cara.

 

Sua postura denunciava a herança de uma nobreza decadente, dessas que ainda vivem do sobrenome para conseguir algum empréstimo consignado. No instante de sua chegada, eu, humilde interessado pelas coisas da alma humana, fui capaz de perceber a angústia existencial que perseguia aquela senhora, ostentadora de um indefectível Botox luminoso.

 

Ela, mais soberba que um lulu-da-pomerânia criado em apartamento duplex da zona sul, foi desinstalada por um dilema que, com certeza, passaria a acompanhá-la pelo resto da vida: de um lado, o atendimento normal; na outra extremidade, uma placa (que algum pentelho, desses que só podem estar a trabalho do próprio demo, resolveu colocar) com o símbolo: 60+.

 

Ouvi que ela chegou a comentar com seu acompanhante:

- Que saco! Tinha que ter colocado “fila preferencial
”.

Mais que justo. Além de ser uma questão legal, isso ainda massagearia o ego dessa classe que gosta de ser VIP em tudo, inclusive para pagar contas atrasadas. Todo esse problema poderia ter sido evitado se o trabalhador imprudente (ou apenas sacana mesmo) não fizesse referência explícita às primaveras contadas.

 

Mas nada mais adiantava agora. A escolha existencial e a angústia sartreana já está materializada ali. De um lado, o direito conquistado. Do outro, a confissão para o mundo (inclusive a própria vizinhança) de que não era mais uma mocinha aprendiz de piano.

 

Confesso que cheguei a ver, pendurados junto aos cílios postiços, o anjinho e o capetinha em pleno ato de aconselhamento à senhora botocada. Platão tinha razão. Naqueles dois, percebi que devemos ter cuidado com as sombras da ilusão, pois só nos libertamos de verdade quando tomamos consciência de que o corpo nada mais é do que a prisão da alma.

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