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Estado de Minas ARTIGO

País de doutores

Convivemos com práticas que possuem o único objetivo de hierarquizar as relações a todo custo e essa é mais uma herança do sistema escravocrata


07/09/2023 17:08
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Médico de braços cruzados
Ironias e sarcasmos à parte, fico intrigada como certas pessoas não se envergonham de colocar em seu cartão de visita, na porta de suas salas em repartições públicas ou em seu jaleco o título de doutor antes do seu nome, tendo cursado apenas a graduação (foto: 8photo/Freepik)

Eu estava no finalzinho da minha adolescência quando conheci o Dimas. Ele morava na Vila São Rafael, uma pequena favela localizada na região leste de Belo Horizonte. Não sei bem o porquê, mas Dimas não tinha um dos pés, era um homem que aparentava ter um pouco mais de cinquenta anos, alto, magro, negro retinto e favelado. Me apresentaram a ele como doutor e sempre o chamei de doutor. Não de doutor Dimas, só doutor mesmo. Até que um dia perguntei aos meus amigos que o conhecia a mais tempo do que eu o porque mesmo que todo mundo o chamava de doutor. Um deles me contou que quando ele ainda era um menino o Dimas distribuía bala para toda criançada da favela em troca delas o chamarem de doutor. As crianças cresceram, se tornaram jovens e o doutor ficou como apelido ou nome social até o final de seus dias.

Muitas vezes a imagem do Dimas me vem à mente, talvez por eu ser de origem preta, pobre como ele e vivendo nesse momento em um mundo  branco, classe média  e  alta  para alcançar o título acadêmico de doutora. Confesso que quando conheci o Dimas, eu como muitas outras pessoas ainda acham, achava que doutor era um pronome de tratamento e o utilizava assim ao me referir a bacharéis  em direito ou em medicina. Hoje com um pouco mais de acesso à informação percebo que: fez graduação não importa qual, é doutor, tem dinheiro ou cara de quem tem dinheiro é doutor. É delegado? É doutor. É branco? É doutor. Não necessariamente é uma premissa cursar um doutorado, apresentar uma tese para ser doutor ou doutora, não é mesmo?
 

Ironias e sarcasmos à parte, fico intrigada como certas pessoas não se envergonham de colocar em seu cartão de visita, na porta de suas salas em repartições públicas ou em seu jaleco o título de doutor antes do seu nome, tendo cursado apenas a graduação. Fico intrigada porque todas as doutoras e todos os doutores que conheci ao longo da minha vida nunca se apresentaram ou me pediram que os chamassem pelo título acadêmico que eles realmente possuem. Convivemos com práticas que possuem o único objetivo de hierarquizar as relações a todo custo e essa é mais uma herança do sistema escravocrata que de uma forma ou de outra força as pessoas em situação de vulnerabilidade financeira ou até educacional a se referirem a um profissional que nem tal título para inflarem os seus egos. Eu digo que é uma prática escravocrata porque essa tradição de chamar de doutor quem não tem doutorado começou lá atrás quando os únicos que tinham acesso ao ensino superior e se formavam médicos e advogados no Brasil colônia eram os filhos de fazendeiros ditos nobres que iam estudar em Portugal. 

Para um país que começou com uma lei que respaldava na legislação a exclusão de negros e negras das escolas, não é de se espantar que os alunos negros de hoje somem um número enorme de evasão escolar. De acordo com uma pesquisa realizada pelo IBGE em 2020 negros somam 71,7% dos jovens que abandonam a escola no Brasil. Portanto é até fácil concluir que a educação, um serviço básico, desde sempre é tratado como privilégio branco. E por mais que pretos e pretas e a população indígena existam e possam ter acesso, pelo menos na teoria,  o funil é tão estreito para essa parcela que a maioria absoluta nas pós-graduações continuam sendo as docentes e discentes brancos. Você pode até pensar que as pessoas que entram é por mérito, competência e por esforço intelectual, afinal é um processo seletivo. O seletivo tem a habilidade de ser excludente.  Da mesma forma que não era uma questão de mérito ser chamado de sinhozinho e  patrão não necessariamente é mérito ser chamado de doutor.

Eu nunca tive a oportunidade de perguntar ao Dimas porque fazia tanta questão de ser chamado de doutor. Mas de preta para preto eu admito que consigo confabular o porquê e também a estratégia de subornar a criançada da favela. O Dimas se foi, mas ainda podemos perguntar aos nossos colegas graduados ou não porque se intitulam e se apresentam publicamente assim sem serem. 

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