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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

PL das Fake News e a verdade absoluta sobre coisa nenhuma

Como o país está lidando com a discussão sobre liberdade na internet é sintomático de que nosso problema é muito maior do que se possa imaginar


03/05/2023 06:00 - atualizado 03/05/2023 07:51

rosto humano com nariz comprido simulando pinóquio escrito a palavra news.
A discussão sobre fake news deve ser mais madura do que emocional (foto: ndla.zendesk.com)

 

Está todo mundo falando do PL das Fake News e, obviamente, a briga de discurso para a galera que vive a vida em uma eterna arena de futebol volta ao seu pico por causa desse negócio. De um lado, o time do político A dá um berro e fala que a gente precisa absurdamente do PL para salvar as nossas criancinhas. Do outro lado, o time do político B dá outro berro dizendo que não podemos aprovar esse PL de jeito nenhum para salvar as nossas criancinhas.

 

Daí, a gente que está no meio do caminho e acredita um pouco mais na lógica do que no político A ou no político B fica atordoado e sem entender absolutamente nada. Afinal, o PL vai salvar ou condenar as criancinhas?? Eu preciso saber disso! Afinal, eu tenho uma criança e, obviamente, as minhas decisões públicas e privadas são grandemente influenciadas pela visão de mundo, de país e de direito que eu desejo para ela.

 

E é neste momento que eu cometo o ato de maior sortilégio possível e imaginável neste mundo de amplos e profundos debates sobre temas de alta relevância técnica e científica: eu li o texto! Sim, podem me sacrificar, tacar pedras e dizer que eu sou uma vergonha para esse país. Eu assumo meu crime. Fechei a rede social, fui até a página da Câmara dos Deputados, procurei pelo PL e abri o texto integral e li do primeiro artigo ao último.

 

É difícil de me defender da minha má conduta de não conseguir me pautar apenas pelas posts da internet, mas infelizmente eu nasci e cresci sem computador.

 

Parêntesis 1: sim crianças, a maiorias das pessoas adultas hoje não tinha computador na infância. E se essa pessoa adulta, como este que vos escreve, nasceu nos estratos sociais menos privilegiados da sociedade, não tinha computador na infância e em parte relevante da vida adulta. Eu mesmo fui ter um computador em casa já estava entrando no segundo ano (e não no segundo semestre!) do curso de Direito.

 

Voltando: por causa dessa característica cronológica da vida, acaba ficando difícil não se contaminar por um fato um tanto quanto objetivo, que é a absoluta desimportância do número de seguidores de alguém para a relevância que eu vou dar para o que ele me diz. Conheço pessoas que têm milhões de seguidores e são incapazes de fazer um “o” com o fundo de um copo e por isso me sinto habilitado a não dar a mínima para elas (falei de uma delas inclusive há pouco tempo aqui).

 

Por sua vez, conheço gente com 200 seguidores que publica umas reflexões interessantíssimas e que me fazem pensar sobre coisas que eu não sei.

 

Parêntesis 2: olha o mundo que a gente vive! 200 seguidores é “nada”, como se fosse possível interagir com 200 pessoas de verdade. Na minha percepção, interagir com 20 pessoas já é o meu absoluto limite de bateria social e destrói completamente a minha capacidade de processar qualquer informação útil. Logo, salvem aqueles que possuem 20 seguidores pelo amor de Deus!

 

Voltando: nesse cenário em que eu desconfio muito, aprendi estudando que não existe nada melhor do que ler na fonte. Já viu alguém falando com a maior propriedade de um autor qualquer e teve a oportunidade de ler este autor depois? A experiência passa por aí e quem já passou por ela tende a gostar de buscar na fonte para debater o conteúdo com os próprios botões.

 

Pois bem, depois de cometer o crime de ler o texto, resolvi separar alguns itens dele aqui para dizer o que eu penso a respeito e, de alguma forma, te fazer refletir sem precisar berrar que as criancinhas vão se lascar ou se salvar. Quem sabe até você também se anime a ler o texto, vale a pena!

 

Para começar, o art. 6º da lei me chamou a atenção, pois é a parte que proíbe, dentro dos limites técnicos possíveis, contas inautênticas, contas automatizadas não identificadas e impõe o dever de identificação dos conteúdos impulsionados. O parágrafo primeiro do artigo estabelece que “As vedações do caput não implicarão restrição à manifestação artística, intelectual ou de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional ou literário, ou a qualquer outra forma de manifestação cultural”

 

Traduzindo em bom português, não pode fazer conta fake, fingindo ser quem você não é; não pode fazer conta com robôs sem identificar que é de robô e, se for vender o seu peixe, tem que falar que está vendendo o peixe e não fazendo publicações inocentes e sem outro intuito. 

 

Parêntesis 3: sim crianças, a maiorias das contas que não são dos nossos amigos e familiares é gerenciada por robôs que fazem publicações automáticas de conteúdo geradas por padrão ou por inteligência artificial. Ou você acreditava mesmo que seu artista favorito ou aquela marca de roupas e sapatos que você tanto gosta ficavam na frente do computador pensando conteúdos para te agradar? Foi mal... mas não.

 

Voltando: me pareceu bem razoável. Além disso, essa estrutura já existe, considerando que contas falsas podem ser denunciadas, muitos anúncios são identificados e já tem um certo número de pessoas cientes de que a maior parte de movimentação da rede é feito por robôs. O que a lei faz é institucionalizar esse negócio e colocar na superfície quem usava do desconhecimento deste fato para se beneficiar. Além disso, fica resguardada a divulgação das suas crenças, suas piadas e suas ficções (ou seja, a terra plana não vai sumir da internet).

 

Outro artigo que me chamou a atenção foi o art. 7º. Este artigo determina que em casos de denúncias por desrespeito à lei, por conta fake ou automatizada e não identificada ou por ordem judicial, o titular da conta deve ser identificado pelo provedor. É tipo um “cara crachá” para ver se a Mariazinha é a Mariazinha mesmo ou se é o Joãozinho se fingindo de besta.

 

Aqui, meu consagrado, estamos diante da clássica ressalva ao direito de manifestação prevista na Constituição. Esse livrinho que, assim como a Bíblia, é muito citado mas pouco lido, diz que é livre a manifestação do pensamento, mas é vedado o anonimato! Isso está escrito lá desde 1988!!! Qual o espanto agora?

 

Parêntesis 4: quem é mais velho vai lembrar dos eventos de 2013 e dos Black Blocks (já se vão 10 anos e eu lembro como se fosse hoje, o que é bem sintomático...). A principal característica desta galera era usar máscaras nas manifestações. O que PM fazia quando intervinha nas manifestações? Arrancava a máscara da galera e dizia que manifestar podia, mas não podia ser anônimo e, por isso, tinha que mostrar a cara. Como diz algum sábio do Twiter, a terra plana capota...

 

Voltando: ou seja, a fiscalização do registro das contas nas redes nada mais é do que uso responsável do direito de manifestação nos estritos termos do que está escrito na Constituição. Absolutamente nada de novo no front... exceto para a galera acostumada a criar perfis do tipo “floresta e metal!” para se sentir livre para falar o que quiser.

 

Outro artigo que me chamou a atenção foi o art. 12 da lei que impõe aos provedores a concessão da garantia de defesa e recurso contra restrição de conteúdo. O usuário que tiver conteúdo retido será informado disso, do motivo e vai ter prazo para se defender e defender a manutenção da publicação, cabendo, inclusive, aos provedores a garantia de mecanismos para restauração da publicação.

 

Esse momento de debate sobre a retirada ou não do conteúdo vai ser posterior ao apagamento da mensagem quando ela impõe dano imediato ou de difícil reparação, expõe a segurança da informação de usuário, viola os direitos das crianças e adolescentes, contem crime de racismo ou estabelece grave comprometimento da integridade ou estabilidade da plataforma.

 

Ou seja, se uma publicação ou conta for denunciada, isso vai ser comunicado ao autor para ele se defender. E se tiver entre os itens acima listados, o conteúdo vai ser removido primeiro e debatido depois.

 

Lendo esse negócio eu até ouso pensar que é uma boa ideia proteger as criancinhas e acabo pendulando para pensar que essa é a ideia do projeto. A questão é que esse processo já ocorre. Mais uma vez, nada de novo...

 

Você quer um dado interessante para você pensar a respeito? O Telegram (sim, o polêmico Telegram!) tem uma página chamada “Stop Children Abuse”. É uma página verificada por sinal...

 

Nesta página estão os dados de intervenção do próprio Telegram sobre denúncias e bloqueios de conteúdo com pornografia infantil (restrito ao mundo Telegram). Vou te dar alguns números: em abril de 2023 foram derrubadas 40.545 contas ou grupos de pornografia infantil.

 

Você não entendeu errado! Somente no mês de abril de 2023 (em 30 dias!) foram derrubadas 40.545 contas que produziam, comprovadamente pelo próprio Telegram, pornografia infantil. No mês de março de 2023 foram 39.427; em fevereiro de 2023 foram 36.633; em janeiro de 2023 foram 48.718. Somando tudo, de 1º/01/2023 a 30/04/2023, somente o Telegram derrubou 165.323 contas e grupos que expunham nossas crianças a brutais violações da sua infância, da sua dignidade, da sua integridade física e psicológica.

 

Como eu disse, eu tenho a minha criança, conheço várias outras crianças e sei que existem milhões de outras crianças que eu nunca vou conhecer, mas que precisam da nossa atenção porque não sabem se defender sozinhas. Acho razoável a gente pensar que algo precisa ser feito. E vejam que algo já está sendo feito! O que o PL tenta fazer aqui é buscar criar ferramentas institucionais para que isso seja uma obrigação e não uma iniciativa altruísta.

 

É por isso que é interessante o art. 13 do PL que estabelece o dever de que os provedores apresentem relatórios periódicos sobre o que está sendo feito a respeito do cumprimento das obrigações de autenticidade na rede. Saber onde estamos pisando e ter uma noção do que significa a internet ainda é um desafio que se agrava a cada dia com a dificuldade de as pessoas saírem da sua bolha da internet.

 

Por este motivo, também achei bem vindo o art. 14 que impõe aos provedores identificar os conteúdos pagos e quem pagou por esses conteúdos. As pessoas precisam saber a quem interessa a divulgação de determinada informação.

 

Neste ponto, a nossa sociedade é extremamente imatura para lidar com esses temas. Parece que dinheiro é pecado em um ambiente que é aberta e institucionalmente capitalista (sim, o capitalismo está previsto na Constituição!). Aqui, vale o exemplo dos EUA. O lobby lá é permitido, conhecido e regulamentado. Todo mundo pode falar o que quiser!

 

Tem lobby até na Suprema Corte! E tem muito! E pode isso? Claro que pode. Só tem uma regra: para falar, você precisa deixar claro quem está te pagando. É simples, é lícito e é honesto. A partir de quem te paga eu sei qual interesse você tem e posso te ouvir a absorver o que for do meu interesse para formar a minha convicção.

 

Por que tanta dificuldade em tratar as coisas assim? Eu só consigo ver dificuldade para aqueles que querem evitar expor quem está financiando a divulgação de informações. De novo, essa divulgação já é a regra, mas coloca no mesmo balaio quem pretende ser afastar dela.

 

Isso é extremamente importante por um fator simples: a internet não é neutra e nunca foi.

 

Parêntesis 5: vocês estão aí discutindo PL das Fake News e o velhinho aqui acompanhou o processo de elaboração do Marco Civil da Internet. Ninguém nem falava disso. Proteção de Dados então era uma fábula que se ouvia falar distantemente. Aí veio o Marco Civil e criou uma das grandes piadas do mundo jurídico: a tal neutralidade da rede. Acredita em mim não? Vai lá no art. 3º, IV, da Lei n. 12.965/2014 e você vai ver essa regra lá.

 

Sabe o que é isso? É a lei dizendo que a internet precisa ter a mesma carga de tráfego sem discriminação de conteúdo! E isso é tão verdadeiro quanto uma nota de 3 reais. Na prática, a internet funciona assim: é uma rodovia de 10 pistas. Dessas 10 pistas, 9 são restritas para quem paga o pedágio. A outra é disponibilizada para todo mundo. Qual você acha que é a pista engarrafada? E você paga para usar redes sociais? Ah tá... 

 

Voltando: como a internet não é neutra, ela funciona para quem paga mais. E aqui vale uma lição que o Direito Digital ensina rápido: “quando o produto é de graça, o produto é você”. Nós somos vendidos todos os dias para alimentar uma indústria que tem algum interesse e seria bastante interessante que a gente soubesse que interesse é esse. Só isso. Vamos continuar sendo vendidos todos os dias, mas pelo menos com ciência de quem é o feitor.

 

Daí você com certeza está concluindo que eu estou fazendo uma ampla defesa do projeto e gritando que ele precisa ser aprovado para salvar as criancinhas, certo? Errado! O projeto tem erros grosseiros como considerar publicação em massa o envio da mesma mensagem por 5 pessoas em um espaço de 15 dias. Fala sério, você repete mais mensagens do que essas no seu grupo de whatsapp da família.

 

O projeto também falha em não especificar com clareza como vai funcionar a fiscalização e punição dos provedores de internet, o que invariavelmente vai descambar em milhões de ações judicias por todo o país, tornando a atividade inviável. No final, podemos ficar sem internet ou com uma internet pior.

 

Ou seja, há falhas grosseiras que precisam ser maturadas por todos os envolvidos. O governo busca aproveitar o “momento” para empurrar um texto que não tem maturidade para aprovação e fatalmente será motivo de muitos ataques judiciais e políticos, desviando do seu verdadeiro valor. Está errada e não merece aplauso a pressa em aprovar algo que precisa ser mais definitivo do que rápido.

 

Da minha parte, deixo então a seguinte reflexão depois da leitura do texto do projeto: as pessoas estão alcançando um nível de incoerência esquisito. Desde que essa noção de Estado, lei e poder existe, há uma balança que nunca chegou ao equilíbrio, mas sempre foi mote de debate: quanto mais segurança, menos liberdade; quanto mais liberdade, menos segurança.

 

O equilíbrio perfeito, se existir, ninguém nunca encontrou. Fato é que sabemos de algo que é bem perene: liberdade sem limites não é liberdade, mas selvageria. O ser humano, infelizmente, não é naturalmente bom. E os dias atuais são marcados por evidências diárias de que a paz social não é uma alternativa de curto prazo, considerando os espaços de violência institucionalizada cada vez mais ampliados.

 

Neste caso, é preciso garantir a liberdade, mas com responsabilidade. É preciso que haja efeito para a violação de regras, já que o cumprimento voluntário muitas vezes não é uma opção aparentemente viável. Este é apenas mais um aspecto do momento institucional que vivemos e que precisa ser tratado com a devida seriedade, pois a internet, as plataformas digitais e a inteligência artificial serão cada vez mais presentes na nossa vida.

 

Cabe ao Estado sim buscar mecanismos de regulação, sem que isso implique em restrição da liberdade. E acredite, os abusos vão acontecer. Por isso, como se diz há muito tempo, o preço da democracia é a eterna vigilância. O espaço democrático nunca estará definitivamente acabado, exigindo de cada um de nós a capacidade de garantir um lugar melhor para quem vem depois, especialmente as nossas crianças.

 

 

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