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Segredos guardados no criado-mudo

Com saudade de mim, remexi a última gaveta de lembranças bem guardadas e enroladas com fitas coloridas


19/07/2020 04:00 - atualizado 15/07/2020 19:28


Adoro a palavra e a função desse móvel de cabeceira com um nome antigo, que não muda. A função do criado-mudo me encanta, principalmente em tempos de isolamento social.

Dia desses, com saudade imensa de mim mesma, abri a última gaveta do criado-mudo, onde guardo secretamente algumas cartas, frases, cartões e fotos. Com saudade de mim, remexi a última gaveta de lembranças bem guardadas e enroladas com fitas coloridas. Não é que achei em uma caderneta – imagine caderneta em tempos de tecnologia, redes sociais, WhatsApp e nem sei mais o quê. 

Na capa da caderneta, uma espécie de agenda de telefones, a primeira frase: “Se eu soubesse que tu vinhas no domingo, de tardinha mandava varrer a casa com uma rosa alexandrina”. Ah, que saudade de mim mesma com essa trova popular.

A viagem da memória estava apenas iniciando. Dois nomes com os respectivos números de telefones abriram as gavetas do meu coração. O primeiro, o da minha antiga terapeuta Ghyslaine Penna, que aguentou minhas inquietações por mais de 10 anos, que esteve na escuta dos meus desencontros, desamores, afetos, decepções, conquistas e do meu jeito enlouquecido de ser.

Com ela, tentei elaborar os meus despropósitos, desequilíbrio financeiro, a minha saga de mãe e de filha. Mas um dia, ela comunicou que ia parar de clinicar, ia se mudar de cidade. Não se sentia mais a vontade para atender pessoas e problemas, por causa da idade.

Ela nunca me disse a idade e nunca ousei perguntar. Acho que era respeito, um código de ética entre psicanalista e paciente.
 
 
O número do telefone piscava para mim e liguei. Conheço poucas pessoas hoje que permanecem com um aparelho de telefone fixo. Tocou uma, duas vezes. Meu coração já estava na boca, com os pensamentos fervilhando de medo, de receio, quando ela atendeu, com a mesma voz suave de terapeuta. A voz não estava mais tão firme, envelhecera, mas me reconheceu de imediato.

A conversa não durou muito, mas o bastante para saber que ela está com 95 anos revelados agora por amizade e não mais pelo relacionamento psicanalítico. Disse que não havia mais motivo para estar em Aimorés, cidade que escolhera para envelhecer, onde nascera e vivera a sua infância e parte da adolescência.

A irmã que a convencera a não ficar na cidade grande tinha partido, morreu pouco tempo depois de sua mudança. O sobrinho de 30 anos que a levava para revisitar a juventude, colocar em dia com a internet e a parafernália do mundo contemporâneo também morrera de uma doença fulminante. 

Ela disse que estava só em Aimorés, sem poder sair aos 95 anos. Falou de BH e de sua vida social. Adorava ler, ir a shows, alguns restaurantes. Eu sempre a via em solenidades com o decorador Ildeu Koscky, amigo de longa data.

Jamais vou me esquecer do livro grosso, aberto em cima da mesa, como se ela tivesse parado ali, naquele trecho, para atender a paciente depois que trocou o consultório por uma das salas de casa, no Bairro Sion, Centro-Sul de BH.

A conversa partiu para amenidades e fiquei de ligar outras vezes, o que pretendo fazer, mas pensei como é solitário envelhecer sozinha. É preciso se reinventar todos os dias, ter paciência e sabedoria, capacidade de resistir aos caprichos do tempo. Ela disse que está bem de saúde. Fiquei pensando no meu próprio ritual de envelhecer e guardei a caderneta na mesma gaveta do criado-mudo.

Mas já havia anotado o outro número que queria ligar. A ginecologista e obstetra Alba Pimenta Sizenando, que me acompanhou desde a primeira menstruação, passando pela gravidez, o nascimento de meu filho único, até a menopausa.

Éramos amigas, mas, com o tempo, os filhos a convenceram de que estava na hora de parar de atender no consultório. Ela resistiu bravamente, mas resolveu ceder aos pedidos dos filhos. Fiquei sabendo que ela caiu no lindo apartamento do Bairro Sion onde mora – e não se recuperou totalmente. Só de andador.

Liguei – e doutora Alba demorou, mas chegou ao telefone. Ficamos alegres as duas, mas senti que à medida que se envelhece, falar muito ao telefone é complicado. Encurtei a conversa, prometendo visitá-la, mas antes perguntei: “Como a senhora está, doutora Alba?”. A resposta dela me fulminou: “Esperando a minha hora!”. Desliguei o telefone e decidi encerrar este texto!.



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