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Sinais de um novo tempo

'Expostos ao sofrimento, aos caprichos do tempo, à fome e à violência, ele tem certeza de que rua não é casa de ninguém'


postado em 07/06/2020 04:00 / atualizado em 07/06/2020 07:48

A barba comprida, de fios brancos, lembra a de um frei franciscano, mas a voz segura e potente é igual à de um monge beneditino, capaz de ser confundida com a de um barítono. Linguagem elaborada para explicar os problemas que enfrentou – e enfrenta – Geraldo de Andrade, de 50 anos, nunca passou por nenhuma universidade, a não ser quando o convidam para um debate. Parece um filósofo. Não bebe, não fuma nem usa drogas, apesar de ser um morador com trajetória de rua. Não pensem que a vida de Geraldo foi fácil, porque para estar na rua é preciso em primeiro lugar exercitar a humildade.

Geraldo sente na pele a lógica do capitalismo que reinou até o surgimento do coronavírus. Uma economia que não tem olhos para ver e dar oportunidades ao povo da rua, com tampões no ouvido do coração. Geraldo acredita em uma mudança, quando os moradores em situação de rua deixarão de ser invisíveis e imprestáveis para uma parte da sociedade menos generosa. Expostos ao sofrimento, aos caprichos do tempo, à fome e à violência, ele tem certeza de que rua não é casa de ninguém.

A chegada da COVID-19 pegou todo mundo de surpresa, principalmente entidades e instituições como a Pastoral do Povo da Rua, que já batalham há mais de 30 anos pela dignidade dessas pessoas. De repente, sob as ordens do vírus, os restaurantes populares fecharam as portas nos fins de semana. O Parque Municipal de Belo Horizonte, onde muitas pessoas em situação de rua tinham espaço para o banho e as necessidades fisiológicas diárias, também foi barrado. Junto com o coronavírus, os termômetros abaixaram, expondo essa população aos rigores e consequências de um inverno de gelar corpos e almas.

Uma rede humanitária veio se somar às entidades que já tinham o coração solidário e sensível para essa causa, que batalham religiosamente por moradia e trabalho para essa gente abandonada à própria sorte. Era preciso abrir frentes, para garantir o café da manhã, oferta de um kit inverno, vagas para hospedagem aos velhos de rua e doentes crônicos e atendimento de saúde e higiene.

Uma rede do bem se juntou à Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de BH , e várias empresas toparam o desafio de ajudar nessa transformação, para que quase nove mil pessoas de rua sejam sujeitos de direitos, protagonistas da própria história e não mais seres abjetos.

Geraldo está em uma dessas casas, abertas provisoriamente para acolher o povo em situação de rua. Ele é um dos 20 hóspedes, sendo que, nesses meses de acolhimento, um deles voltou para a família no interior de Minas e outro fugiu, o que costuma ocorrer. De máscara, Geraldo tem trabalho e renda. Cumprimenta os visitantes com toque de cotovelo, sem dar as mãos ou abraçar.

Faz parte da Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reciclável (Asmare), criada na década de 1990 por iniciativa da Pastoral do Povo da Rua, que está na terceira geração de netos dos fundadores. Fez parte do projeto Empreendendo Vidas – também iniciativa da mesma pastoral – e desde 2014 é funcionário do Mineirão, em eventos e jogos. Tem uniforme, monta, desmonta equipamento, faz reciclagem e desperta a consciência ecológica dos frequentadores do estádio, com distribuição de sacolinhas para restos de lixo. Prova de que é possível, com apoio e vontade política, dar dignidade a todos.

Cita também os Cozinheiros de Rua, que surgiu do projeto Empreendendo Vidas. Em uma das casas de hospedagem, eles puderam mostrar o talento gastronômico na preparação de canjica para todos. De dar água na boca. No fim de semana, o café da manhã para distribuição foi feito, com amor e alegria, em uma padaria do Barro Preto (o dono desse estabelecimento se integrou à rede humanitária).
 
Geraldo é um sonhador e junto com mais 35 moradores em situação de rua mergulhou em cursos de capacitação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Cefet e Senai, por meio dos polos de cidadania – grupos de vulnerabilidade social. Foi o bastante para se sentir incentivado a continuar caminhando em busca de um lugar no mundo. Com resultados bons ou ruins, tornaram-se protagonistas da própria história. Somente 11 resistiram a tudo, cumprindo os direitos, mas também reconhecendo deveres. Nem todos aguentaram esse trabalho coletivo, que é justo, equilibrado, mas desafiador.

Os 11 moradores em situação de rua montaram uma cooperativa. Cada um faz o que sabe: serviços de bombeiro, eletricista, pedreiro, pintor e outros. Geraldo sabe que é mais difícil para eles, pois precisam ser conhecidos e concorrer com outros da área e não se abalar com uma sociedade que ainda vive sob o mandamento do “quem indica”.

Geraldo resiste a tudo e a todas as artimanhas de uma velha economia. Na semana passada, os 11 integrantes da cooperativa foram requisitados para um trabalho na Asmare, depois que pessoas entraram e roubaram a fiação de um dos galpões.

Acha que depois de tanta luta, é chegada a hora da mudança de paradigma. Um movimento diferenciado com a chegada COVID-19 está abrindo portas para uma economia solidária – e a compreensão de que os indivíduos em situação de rua não são vítimas, mas protagonistas.

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