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A gentileza e a pandemia: epidemias revelam o melhor e o pior da humanidade

Gestos de solidariedade e carinho contrastam com oportunismo, egoísmo, mesquinhez, perversidade e crueldade


(foto: United Nations/Unsplash)
(foto: United Nations/Unsplash)

Maria é o nome da minha mãe. Segundo minha prima Zezé, Maria José Medeiros, deveria ser "gentileza suave". Mamãe, como já disse, chorava pelo defunto alheio. Aliás, doença geneticamente transferida. O primeiro atestado de óbito que preenchi e assinei, ao terminar, a auxiliar de enfermagem que me acompanhava perguntou se era meu parente. Respondi "não, meu paciente."

Sempre sofri muito ao assinar atestados de óbito. Não por falta de fé, mas despedidas sempre me emocionaram muito. Encontros e Despedidas, de Brant e Nascimento, é uma das minhas músicas preferidas.

Na pandemia, as mortes ficaram banalizadas pela grandeza dos números. Chegamos a mais de 225 mil óbitos. Estamos perdendo a capacidade de ver os números como pessoas. A tragédia prolongada entorpece a nossa capacidade de perceber que números choram, riem, abraçam, amam, são filhos, pais ou mães de alguém.

Epidemias revelam o melhor e o pior da humanidade. Gestos de solidariedade e carinho contrastam com oportunismo, egoísmo, mesquinhez, perversidade e crueldade.

Vacinas são um bem escasso num país organizado. No Brasil, no momento atual, um privilégio de poucos, apesar de ser um direito de todos. Mas o desespero e a ignorância fazem a escassez se transformar em desperdício. O conhecimento científico é literalmente atropelado em nome do "meu pirão primeiro".

Essa semana discuti o sentido de se vacinar pessoas que tiveram a doença nos últimos seis meses. Estudos científicos, publicados nos jornais mais respeitados do mundo, mostram que pessoas, inclusive profissionais de saúde, infectadas há menos de seis meses, têm anticorpos suficientes para protegê-las melhor do que qualquer vacina disponível.

Vacinar pessoas que já tiveram a doença tem algum problema?! Não sabemos. Provavelmente, não. A pergunta é outra: estas pessoas precisam ser vacinadas neste momento?! Certamente não.

Entretanto, mesmo com argumentos e literatura evidenciando a falta de sentido em vaciná-las agora, o egoísmo e insegurança falam mais alto. Geralmente, a falta de planejamento e solidariedade cresce em escala geométrica, sonegando esse bem escasso na mesma velocidade.

Redistribuir essas vacinas para os mais vulneráveis e com menos chance para enfrentar o vírus poderia salvar milhares de pessoas. Trata-se de gentileza cientificamente evidenciada, porém, ignorada, diante do medo e incertezas. Angústia semelhante faz com que as pessoas se agarrarem a tratamentos sem evidência científica.

Nessa semana tive a grata satisfação de receber um precioso texto da Maria, filha da Zezé, minha prima, a qual mencionei no princípio dessa coluna. Conheci a Maria ainda criança e convivi muito pouco com ela. Mas foi extremamente prazeroso reencontrá-la na lucidez e maturidade com que tratou o tema "gentileza" durante a pandemia.

Segue a Gentileza de Maria:

"Há um ditado nestas terras montanhosas que diz: mineiro só é solidário no câncer. Se Otto Lara Rezende assim o escreveu há anos, penso se ele diria o mesmo no que tange à solidariedade do mineiro frente à COVID...

A pandemia me fez pensar muito em solidariedade. Em seu início, vimos vários gestos de gentileza, como bilhetinhos escritos por jovens se oferecendo para fazer compras para os vizinhos idosos. Recordo-me também de uma fala de Jorge Forbes (psicanalista paulista), na qual ele dizia que, diante da pandemia, uma resposta na qual ele apostava era a solidariedade.

Sim, acho que algumas pessoas trataram o terror do momento em que vivemos com a solidariedade. Só que essas "algumas", com o passar dos meses, tornaram-se...digamos, mais raras. Pelo menos essa é uma impressão que ando sentindo: as pessoas andam pouco gentis.

Percebo uma impaciência que às vezes resvala na falta de educação. Claro que estamos todos cansados, o que reflete na nossa gentileza. Estamos tão cansados que podemos nos ver ríspidos, agressivos... Compreensível? Sim, embora não ache que essa seja uma boa resposta.

É como se as pessoas, na solidão, tenham percebido que é possível viver uma vida cada vez menos dentro do laço social onde circulam regras, normas e valores. Digo " solidão" propositalmente. É como se muitas pessoas tratassem o real do desamparo, que em certa medida reside na solidão, com a crueza do real, o que é propenso para o surgimento de vínculos áridos.

É possível que essa falta de gentileza que anda me incomodando por agora já estivesse presente, mas haviam mais distrações para que eu não precisasse ser confrontada com sua ausência. O grande Profeta Gentileza, criou, com muita poesia e inventividade, uma frase que se tornou uma espécie de mantra, afinal, não há quem não a conheça: "gentileza gera gentileza".

Seria bonito se isso fosse de fato uma realidade, mas tendo a pensar essa frase pelo prisma da demanda insaciável dos seres falantes. Muitas vezes, gentileza gera abuso (essa frase tem sua origem na peça de Bertold Bretch A alma boa de Setsuan, protagonizada, no Brasil, pela talentosa Denise Fraga). É a velha máxima: "deu a mão e já quer logo o braço".

Jacques Lacan, famoso psicanalista francês, foi perspicaz em apontar que demanda gera demanda que gera demanda, até a exaustão. A demanda é caprichosa, é capaz de pedir o impossível! É por isso que gestos de gentileza podem abrir um terreno amplo de tolerância, mas, como foi dito, há quem ultrapasse o tolerável, há quem goze com o intolerável de demandas impossíveis.

Esses são os que subvertem a frase do Profeta e criam a máxima de que a gentileza (pode) gerar abuso. Levando isso em consideração, em que momento estamos? Com a vacina logo ali, temos os fura-filas, aqueles que, de que modo for, usam dos seus privilégios para ter acesso a algo que estamos esperando há quase um ano. Neste ponto, a solidariedade, Otto, foi para o beleléu, em Minas e em todo o país.

Também estamos no momento em que se acumulam mais de 200 mil mortes. Um sem número de óbitos que foi consequência de um governo inepto, débil e perverso: o número um na inabilidade em lidar com a pandemia! Ingenuidade minha defender a gentileza em um país que elegeu a corporificação do despudor, da deselegância, da indiferença, da irresponsabilidade, da insensatez, e por aí vai.

Em uma miscelânea de frases, tal como os mantos bordados pelo Profeta Gentileza, vivemos em um país que não é para iniciantes, onde os fracos não têm vez, onde o "jeitinho brasileiro" impera desde Pero Vaz de Caminha. Não temos o Profeta, mas temos um "Messias" que vem abusando dos brasileiros reiteradamente com seu descaso. Sua intolerância, indubitavelmente, gerou intolerância.

Por outro lado, gentileza nem sempre gera gentileza, assim como nem sempre  gera abuso. Talvez o bolsonarismo tenha nos deixado um pouco cínicos... Então, o que nos resta? Insistir nas invenções pessoais que contemplem uma outra forma de estar no laço social, sem gentileza abobalhada a todo custo, tampouco com abusos em sintonia com o que há de pior nas estruturas deste país."

*Maria Medeiros é Doutora em Teorias Psicanalíticas pela UFRJ, Mestre em Psicologia com ênfase em Psicanálise pela UFMG, bacharel e psicóloga clínica pela UFMG. Em seu consultório atende adolescentes e adultos. Possui experiência em políticas públicas voltadas para Medidas Socioeducativas e para o tratamento de pacientes judiciários. Instagram: @maria _medeiros_psicanalise

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