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Estado de Minas

Dívidas dos estados são herança explosiva

Passivos de estados com a União são considerados ilegais porque incorporaram o ônus da privatização de bancos, com transferência de recursos para o sistema financeiro


postado em 02/05/2016 06:00 / atualizado em 02/05/2016 07:20



Obscuras desde a sua fundação, os esqueletos saltam dos armários em meio à profunda crise fiscal de estados e da União, fazendo barulho na medida em que os primeiros, diante de caixas vazios, parcelam salários, cortam investimentos e suspendem pagamentos. O problema foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que, na semana passada, devolveu a discussão para o âmbito político: estados e União têm dois meses para se entender em relação ao pagamento de juros e amortizações do passivo.

Qual é a origem da dívida de estados com a União, é a pergunta que se fazem gestores. Entre 1997 e 2000, o passivo inicial somava R$ 112,176 bilhões. De lá para cá, governos estaduais já desembolsaram em juros e amortizações três vezes mais. Apesar disso, ainda devem ao governo federal, em valores de fevereiro, R$ 479,92 bilhões contra R$ 473,47 bilhões em janeiro, segundo dados do Banco Central. Portanto, indiferente à falência iminente dos caixas estaduais, o passivo engorda em média R$ 6,45 bilhões ao mês. “Essa dívida nasce ilegítima porque esses recursos jamais chegaram aos cofres estaduais”, afirma Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, organização não governamental convidada para auditar as dívidas de países como a Grécia e o Equador, responsável pela edição da obra Dívida dos estados, uma radiografia profunda do processo de endividamento e do refinanciamento pela União.

A parcela mais relevante do montante refinanciado dos estados pela União, entre 1997 e 2000, correspondeu às dívidas de bancos estaduais no âmbito do Programa de Incentivo à Redução da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Financeira Bancária (Proes). Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, 55%, ou seja, R$ 61,92 bilhões do montante inicial, correspondem ao passivo de bancos privatizados incorporados às dívidas estaduais. “As instituições financeiras assumiram as carteiras de clientes, dinheiro em caixa, créditos a receber, os edifícios, enfim todos os bônus dos bancos estaduais. Mas coube aos estados o ônus: foram obrigados a incorporar o passivo desses bancos no refinanciamento de suas dívidas”, afirma Maria Lucia Fattorelli.

Minas Gerais refinanciou, em 18/2/1998, R$ 10,18 bilhões, a juros de 7,5% ao ano. Mas, entre 1998 e 2000, o estado ainda incorporou ao refinanciamento outros R$ 4,7 bilhões resultantes dos passivos dos bancos Credireal e Bemge, privatizados pelo Proes. A dívida inicial de Minas com a União saltou para R$ 14,88 bilhões. No Paraná, o problema foi ainda mais sério. A dívida em 31/3/1998 era de R$ 462,2 milhões, mas foi multiplicada por 12 com a incorporação do passivo do Banestado (Banco do Estado do Paraná) privatizado: R$ 5,659 bilhões.

BAIXA CREDIBILIDADE A incorporação dos passivos de bancos privatizados não foi o único problema já identificado pela Auditoria Cidadã da Dívida na raiz do endividamento de estados. “Os títulos dos tesouros estaduais foram lançados no mercado ao longo das décadas de 70, 80 e início de 90 com deságio porque tinham baixa credibilidade. Apesar disso, foram assumidos pela União, por ocasião do refinanciamento, pelo valor de face”, afirma Maria Lúcia Fattorelli. “Se a União tivesse arrematado esses títulos no mercado, o teria feito com valores muito baixos, possibilitando o seu refinanciamento sem a cobrança de juros dos estados”, afirma Fattorelli. Mas longe disso, à época, o governo federal entregou aos credores títulos da dívida federal e recebeu as dívidas.

No balaio de gatos desses títulos dos tesouros estaduais, havia de tudo um pouco, inclusive fraudes, algumas apuradas e comprovadas em comissões parlamentares de inquérito, como foi o caso da Assembleia Legislativa de São Paulo. “O refinanciamento favoreceu ao setor financeiro, que tinha créditos duvidosos e teve a reciclagem de dívida desvalorizada para dívida 100% do valor de face”, critica a representante da Auditoria Cidadã da Dívida. “Foi um impressionante esquema de transferência de renda para os bancos.”

Impactados pelas onerosas condições financeiras – 360 prestações mensais, atualizadas mensalmente pela variação positiva do IGP-DI, acrescida de juros que variavam entre 6% e 9% ao ano, dependendo do estado – os estados descascam hoje o abacaxi. Respondem por passivo que se amontou ao longo do tempo, dado que todas as vezes em que o pagamento de juros e amortizações ultrapassou 13% das receitas líquidas reais a diferença foi incorporada ao passivo, sobre o qual incidem possivelmente os maiores juros do mundo que, com a correção, chegaram a 20% nos últimos anos.

A negociação para a revisão dos indexadores da dívida entre estados e a União se arrasta há mais de uma década. Mas foi a partir da aprovação da Lei complementar 148/2014 e da Lei 151/2015, que autorizaram a União a conceder descontos aos estados, seguidas do decreto 8.616/2015, que estados recorreram ao STF. Segundo os estados, a lei previa um desconto, cujo valor corresponderia à diferença entre o saldo devedor existente em janeiro de 2013 e o saldo apurado segundo a variação acumulada da taxa Selic desde a assinatura dos contratos de financiamento, celebrados nos anos 90. Mas a União considerava que essa variação deveria ser calculada com juros compostos (juros sobre juros) – o que reduziria o valor total do desconto. Já os estados entendem ser aplicável juros simples, o que aumenta o desconto e reduziria suas dívidas. O STF deu prazo de 60 dias para as partes entrarem em acordo.

Passo a passo do endividamento dos estados


» O processo de endividamento dos estados se inicia na década de 70, após a vigência do Código Tributário Nacional de 1966, que deu início a um processo de concentração do poder tributário no âmbito da União em detrimento aos estados e municípios.

» Segundo Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, sem condições de investimento, houve clara opção de busca de recursos para estados por meio de endividamento.

» Levantamento realizado pela Auditoria Cidadã da Dívida junto ao Senado Federal indica que só na década de 70 foram aprovadas 953 resoluções autorizativas para empréstimos de toda a ordem, algumas inclusive com instituições em paraísos fiscais. “Mais da metade dos contratos de dívida dos estados nem sequer informava a instituição credora. Não sabemos se o dinheiro chegou, em que foi aplicado, não há transparência alguma em relação à origem dessas dívidas”, assinala Maria Lúcia Fattorelli.

» As resoluções do Senado indicavam sobretudo aprovação de operações para a emissão de letras financeiras dos tesouros estaduais. Nas décadas de 70, 80 e de 90, até a edição da Lei 9.496, de 11 de Setembro de 1997, foram aprovadas no Senado Federal em favor dos 26 estados e Distrito Federal um total de 1.756 resoluções autorizativas para a obtenção de empréstimos e emissão de letras financeiras.

» Ao final dos anos 1990, os estados se encontravam em delicada situação financeira, devido principalmente à política de juros altíssimos estabelecidos pela esfera federal, que fazia multiplicar as dívidas estaduais junto ao setor financeiro. “Por recomendação do FMI, a União impôs aos estados o refinanciamento dessas dívidas. Pretendia estar “salvando” os entes federados, que ficaram sem opção, diante das taxas definidas pelo governo federal cobradas por todo o mercado financeiro.

» O refinanciamento das dívidas dos estados pela União, previsto na Lei 9.496/97, veio associado a um conjunto de programas de ajuste fiscal e privatização do patrimônio público dos estados, além de oneroso processo de saneamento de instituições financeiras.

» Integravam o pacote: o Programa de Apoio à Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados (PAF), o Programa Estadual de Desestatização (PED), o Programa de Incentivo à Redução da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Financeira Bancária (Proes).

» Vinte e cinco estados e o Distrito Federal aderiram (à exceção do recém-criado estado de Tocantins). O refinanciamento da dívida dos estados favoreceu o setor financeiro, que tinha créditos duvidosos e teve a reciclagem de dívida desvalorizada para dívida 100% do valor de face, critica a representante da Auditoria Cidadã da Dívida.

» Eram condições definidas entre União e estados para o refinanciamento das dívidas: pagamento em 360 prestações mensais (30 anos), com atualização mensal pela variação positiva do IGP-DI, acrescida de juros, que variavam entre 6% e 9% ao ano, dependendo do estado.

» Além da troca de títulos podres dos estados por títulos seguros da União, o setor financeiro ainda se beneficiou nesse processo com a privatização dos bancos estaduais: adquiriu a preços módicos imóveis, clientela, títulos a receber e dinheiro em caixa. Os passivos dos bancos privatizados foram incorporados, respondendo por 55% das dívidas refinanciadas dos estados pela União.

» Até a instauração da CPI da dívida, em agosto de 2009 na Câmara dos Deputados, o tema era marginal. Foi colocado em pauta sobretudo pelo trabalho da Auditoria Cidadã da Dívida, que apontava para a ilegalidade das dívidas.

» Governadores passaram a pressionar a União para a renegociação dos indexadores das dívidas. No fim de 2013, a União apresentou projeto de lei complementar, inicialmente número 238/2013, que resultou na aprovação da lei complementar 148/2014. A lei mudou o indexador do IGPDI para o IPCA e baixou os juros, que variaram de 6% a 9%, para 4%. A fórmula retroagia a janeiro de 2013. Em março de 2015, o governo federal disse que a lei teria de ser regulamentada. Em 29 de dezembro de 2015 saiu o decreto 8.616, de 29 de dezembro de 2015, que regulamentou os termos da lei, mas estados consideraram que trouxe uma série de condições e exigências não previstas na lei complementar.

» Quase todos os estados recorreram ao STF e 11 obtiveram liminar para que não sofressem sanções legais por parte da União ao realizar o pagamento da dívida de forma linear e não capitalizada, ou seja, fazendo uso de juros simples e não compostos.

» Ao julgar em 27 de abril mandados de segurança de Minas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o STF estabeleceu prazo de 60 dias para que as partes cheguem a um acordo em relação ao impasse sobre o indexador da dívida. Se não houver solução, a Corte voltará a analisar o cálculo, para definir o montante a ser pago.

 


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