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Estado de Minas Vi­da re­fei­ta em ver­sos

Com ajuda da literatura, morador de rua de BH vence o crack

Ago­ra po­e­ta, Roberto Nascimento se sus­ten­ta com a ven­da de seus dois li­vros e já pla­ne­ja lan­çar ou­tro


19/12/2015 06:00 - atualizado 19/12/2015 07:55

Roberto Nascimento recuperou o sorriso e a autoestima ao domar a droga. Apoiado pela atriz e professora de literatura Jhê Delacroix, ele trabalha em uma coleção de cordel(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A.Press)
Roberto Nascimento recuperou o sorriso e a autoestima ao domar a droga. Apoiado pela atriz e professora de literatura Jhê Delacroix, ele trabalha em uma coleção de cordel (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A.Press)

“De mo­ra­dor de rua a poe­ta.” É com es­sa fra­se que Ro­ber­to Nas­ci­men­to, um va­la­da­ren­se de 51 anos, re­su­me o en­re­do da pró­pria vi­da. O ví­cio em cra­ck o fez per­der a fa­mí­lia, os ami­gos de in­fân­cia, o em­pre­go, a au­toes­ti­ma e o sor­ri­so. A von­ta­de de ven­cer o ví­cio e o con­ta­to diá­rio com a li­te­ra­tu­ra lhe de­vol­ve­ram a ale­gria. “Fui um sem-te­to até fe­ve­rei­ro pas­sa­do. Ago­ra, gan­ho a vi­da ne­go­cian­do meus li­vros”, con­ta, or­gu­lho­so, o au­tor de O poe­ta am­bu­lan­te I e O poe­ta am­bu­lan­te II – ca­da um cus­ta R$ 5.

A cha­ma­da po­pu­la­ção em si­tua­ção de rua cres­ceu 57% em Be­lo Ho­ri­zon­te em 10 anos, so­man­do 1.827 ho­mens e mu­lhe­res em 2013, ano-ba­se do úl­ti­mo cen­so so­bre o as­sun­to. Pro­ble­mas fa­mi­lia­res (52% das res­pos­tas) são o prin­ci­pal mo­ti­vo en­tre os que le­va­ram es­sas pes­soas a dei­xa­rem seus la­res. O se­gun­do é a de­pen­dên­cia do ál­cool ou dro­gas ilí­ci­tas (43,9%).

Ro­ber­to dei­xou Go­ver­na­dor Va­la­da­res, na com­pa­nhia da mãe e de três ir­mãos, quan­do crian­ça. A fa­mí­lia mo­rou em bair­ros da Re­gião Les­te de BH, on­de o ra­paz es­tu­dou até a sex­ta sé­rie, se ca­sou e te­ve três fi­lhos. Já adul­to, co­nhe­ceu o cra­ck. Lo­go se tor­nou um vi­cia­do. E seu ca­sa­men­to, de 20 anos, não re­sis­tiu aos pro­ble­mas cau­sa­dos pe­la de­pen­dên­cia da dro­ga.

“Pa­ra ban­car o con­su­mo do cra­ck, ven­di até os apa­re­lhos de ce­lu­lar dos meus fi­lhos. A es­po­sa me lar­gou. Foi com as crian­ças – te­nho duas me­ni­nas e um ra­paz – pa­ra Sa­li­nas (Nor­te do es­ta­do). Já eu fui pa­ra a rua”, re­cor­da. A dro­ga tam­bém não lhe pou­pou o em­pre­go de pe­drei­ro. Fo­ram dias e noi­tes di­fí­ceis. “Fi­quei de­bai­xo de mar­qui­se por qua­se dois anos e meio.

Em 27 de fe­ve­rei­ro de 2013, nu­ma abor­da­gem po­li­cial, um sar­gen­to me dis­se que duas ou três pes­soas, em ca­da 100 vi­cia­dos, con­se­guem lar­gar o cra­ck. Daí eu pen­sei: ‘Sou um des­ses dois ou três’. O po­li­cial me le­vou pa­ra o pro­gra­ma SOS Dro­gas”. Am­pa­ra­do por es­pe­cia­lis­tas, Ro­ber­to foi en­ca­mi­nha­do ao Cen­tro Mi­nei­ro de To­xi­co­ma­nia (CMT). E co­me­çou a fre­quen­tar a uni­da­de do Bair­ro Cru­zei­ro do cen­tro de re­fe­rên­cia em saú­de men­tal (Cer­sam), cu­jo ob­je­ti­vo é aju­dar o pa­cien­te a re­cons­truir a vi­da.

Via­gens Foi lá que o va­la­da­ren­se co­me­çou a ter con­ta­to com a poe­sia. Das via­gens da dro­ga, ele pas­sou a via­jar nos tex­tos de Gon­çal­ves Dias (1823-1864) e Cas­tro Al­ves (1847-1871). “Tam­bém nos de Vi­ní­cius de Mo­raes (1913-1980). Es­tu­dei ape­nas até a sex­ta sé­rie, mas sem­pre gos­tei mui­to de ler”, con­ta o ra­paz, que co­me­çou a criar e a de­cla­mar ver­sos. Os pro­fis­sio­nais do Cer­sam o es­ti­mu­la­ram a pu­bli­car a pri­mei­ra obra, con­cluí­da em 2014. A se­gun­da foi lan­ça­da há pou­cos me­ses.

Uma das poe­sias tem a La­goa da Pam­pu­lha, car­tão-pos­tal da ca­pi­tal, co­mo pa­no de fun­do. Ba­ti­za­do de O pa­to ro­dou, o tex­to su­ge­re um fi­nal in­fe­liz: “Eu fi­quei ima­gi­nan­do/ O mis­té­rio da na­tu­re­za/ Aque­le pa­to na­dan­do/ Quan­ta cla­ma e su­ti­le­za/ Me lem­brei do ja­ca­ré/ Me ba­teu uma tris­te­za”. Ele re­cor­reu à fau­na pa­ra ou­tra poe­sia: “Ti­co-ti­co no fu­bá/ Sa­biá na la­ran­jei­ra/ Tar­ta­ru­ga tra­ca­já/ Ma­ri­ta­ca ba­gun­cei­ra/ A pre­gui­ça lá es­tá/ Dor­min­do a tar­de in­tei­ra”.

O tex­to foi ba­ti­za­do de Bi­chos do Ma­to, no­me que faz Ro­ber­to se lem­brar da épo­ca em que mo­ra­va na rua: “Cer­ta vez, fi­quei 16 dias sem to­mar ba­nho. Pa­re­cia um bi­cho. Eu não aguen­ta­va o meu pró­prio chei­ro. Usei a mes­ma cue­ca. Quan­do to­mei ba­nho, no ter­mi­nal ro­do­viá­rio de Be­lo Ho­ri­zon­te, fi­quei as­sus­ta­do com a cor da água”.

Ro­ber­to ago­ra tra­ba­lha em um no­vo pro­je­to. Es­ti­mu­la­do pe­la atriz, can­to­ra, con­ta­do­ra de his­tó­ria e pro­fes­so­ra de li­te­ra­tu­ra Jhê De­la­croix, ele pla­ne­ja pu­bli­car uma co­le­tâ­nea de cor­del no pró­xi­mo ano. “Per­ce­bi que ele tem ti­no pa­ra o cor­del. Os cor­de­lis­tas es­tão ca­da vez mais ra­ros nos gran­des cen­tros ur­ba­nos”, con­ta a pro­fes­so­ra de li­te­ra­tu­ra do Cer­sam.

Jhê adian­ta que o tra­ba­lho te­rá co­mo te­ma a vi­são de um ho­mem so­bre o uni­ver­so fe­mi­ni­no, le­van­do-se em con­ta os mo­vi­men­tos so­ciais. “É a vi­são de­le, co­mo ho­mem, so­bre o uni­ver­so fe­mi­ni­no, as­sim co­mo o que as mu­lhe­res que­rem ho­je em dia”, re­for­çou a pro­fes­so­ra.


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