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Estado de Minas

VIDA PASSAGEIRA: um dia e uma noite nas linhas de ônibus que ligam Belo Horizonte

Em 14 viagens, curiosidades, figuras e temor nas linhas que ligam pessoas e histórias


postado em 04/10/2015 09:00 / atualizado em 04/10/2015 09:46

Ver galeria . 14 Fotos Reflexo do cotidiano: espaço dividido, preocupações distintasAlexandre Guzanshe / EM/ D.A. Press
Reflexo do cotidiano: espaço dividido, preocupações distintas (foto: Alexandre Guzanshe / EM/ D.A. Press )

Os raios de sol atravessam as janelas do ônibus da linha 3030 (Pilar–Olhos d’Água–Centro) e realçam os contornos da moça bonita que vai sentada, levando três bolsas grandes. “Você pode descer no último ponto da Afonso Pena”, avisa o trocador à jovem de batom, esmalte e cabelo – tudo vermelho – combinando com a cor das sapatilhas. São12h30 de uma segunda-feira e a atraente dama de vermelho é mais uma anônima entre os quase 1,6 milhão de passageiro que circulam diariamente de ônibus, nos dias úteis, em  ruas e avenidas de Belo Horizonte. Nessa multidão, a conversa nem sempre é tão amena: às vezes, resvala na irritação; noutras, descamba para a violência, como a que vitimou um trabalhador dias atrás. Mas a vida tem que seguir. Sofrida, mas,  felizmente, mais tranquila na maioria das viagens. Para revelar histórias escondidas nesse sobe e desce, a reportagem do Estado de Minas embarcou em 14 ônibus, circulando por 12 horas. Durante o intervalo de um dia e uma noite, observou nuances, problemas, sufoco e contratempos daqueles que se valem dos coletivos para se locomover na metrópole. Além, é claro, de escutar – com respeitosa indiscrição – conversas alheias e registrar a paisagem da janela.

Reportagem do EM percorreu BH em 14 viagens, por 12 horas(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
Reportagem do EM percorreu BH em 14 viagens, por 12 horas (foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
DA JANELA LATERAL

O Bairro Pilar, na Região do Barreiro, final da linha 3030, quase não tem prédios. Vistas passando pelas janelas do ônibus – ou balaio, busu, busão, como também é conhecido na gíria dos pontos – , muitas das casas revelam os chamados puxadinhos, como um andar a mais, às vezes inacabado, ou um terraço. Reboco e pintura são artigo raro. Na Rua Rio das Flores, quem segue o sacolejo pode observar um pé de couve imenso, mais alto que o muro da casa. Um açougue exibe uma placa com a promoção de suã: R$ 2,99 o quilo. O cheiro de comida refogada escapa de alguma cozinha e invade o lotação – outro nome do que também já foi conhecido genericamente como “condução”. Pouco antes de o veículo alcançar a BR-040, a caminho do Centro, barracões se equilibram sobre barrancos em um contrassenso pouco seguro.
“Fico prestando atenção na cidade. Gosto de olhar o paisagismo”, conta Angélica Santos, de 21 anos. São 22h e ela volta da aula, no Centro, para a casa da tia, no Bairro Caiçara, na Região Noroeste. Estuda engenharia de produção e, no seu trajeto, já observou mais do que prédios, carros e árvores. “Uma vez, vi um morador de rua sendo atropelado aqui na avenida (Afonso Pena)”, lembra. Puxando os fones do ouvido, a garota interrompe a música para conversar. Escutava o trio eletrônico Years & Years. A música Desire (Desejo em português) fala de amor e sedução.


Sentimentos, aliás, não faltam entre as 291 linhas do transporte coletivo de BH. Em frente ao Edifício Central, na Avenida dos Andradas, passa um ônibus que tem como destino a felicidade. Ou melhor: o Conjunto Felicidade, na Região Norte. Aqueles que aguardam a linha 1505R ali têm ainda outras opções para tentar alcançar a alegria. Uma casa lotérica alimenta a cobiça de dias sem ônibus, informando o prêmio acumulado – R$ 13 milhões da Mega-Sena – e um carro com equipamento de som anuncia em alto volume as atrações de um circo. O júbilo, mesmo que breve, pode ser buscado, em último caso, na casa de balas e doces, ao lado da lotérica. Serve para adoçar a espera.

Passageiros enfrentam lotação nos coletivos(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
Passageiros enfrentam lotação nos coletivos (foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
O SENTIDO DO LOTAÇÃO
A alegria mais barata de passageiro, no entanto, é subir em ônibus vazio. Quando o 1505R chega ao ponto do Edifício Central, às 15h50, todos conseguem assentos. O lotação segue pela Avenida Cristiano Machado e, quando se aproxima da Estação São Gabriel, lotado, já faz entender o apelido. Nilcinha Rodrigues, de 32 anos, passa aperto para se acomodar com os dois sobrinhos, ao embarcar no Bairro Tupi. A menina desliza por baixo da roleta, enquanto o menino equilibra, com dificuldade, dois marmitex de isopor. “É sorvete”, explica Nilcinha, que está retornando do dentista com os pequenos.

Ela nasceu em Pescador, no Vale do Mucuri. Trabalhou como vigilante, mas, no momento, não está empregada, pois se recupera de um acidente de moto.“Se eu sou feliz? Sou sim. Felicidade não se encontra nos outros, mas em Deus”, prega a fiel da Igreja do Avivamento Bíblico, moradora do Felicidade há 20 anos. A reclamação dela é apenas com o que considera descaso da prefeitura, que não canaliza o Córrego Tamboril – um desses eufemismos que nomeiam canais de esgoto de onde o cheiro sobe forte e nauseante.

O aposentado José Matosinhos, de 79 anos, não compartilha do contentamento quase completo da vizinha. “Até as pulgas aborrecem”, entende José, que faz coro ao reclamar do cheiro do “córrego”. A bordo do busão, os passageiros não percebem ter mais sorte que os dois burros que, sem opção, pastam na beira do que já foi um curso d’água. Um pouco mais longe, quem desceu observa os garotos Pedro, Robert e Lucas, que jogam futebol no campinho de terra batida. Ao perceber o repórter fotográfico registrando os lances, se esforçam para acertar um gol de bicicleta. São 16h45 quando o 1505R deixa o Conjunto Felicidade em direção ao Centro.


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