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Estado de Minas

Ex-seguidora de seita revela rotina de doutrinamento, expropriação e trabalho forçado

Bastidores do golpe da fé que desviou R$ 100 milhões é detalhado. Líderes são acusados de estelionato e lavagem de dinheiro


postado em 19/08/2015 06:00 / atualizado em 19/08/2015 07:28

"Eu e os meus seis filhos saímos da comunidade com a roupa do corpo e três colchões velhos", O.M., costureira que diz ter entregado tudo para viver por 12 anos trabalhando sem salário para o grupo (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
São Vicente de Minas – O patrimônio de uma vida entregue “em nome de Deus”. O depoimento de uma ex-seguidora da seita “Jesus, a verdade que marca” – alvo de ação da Polícia Federal que prendeu seis de seus líderes, sob acusações que incluem desvio de R$ 100 milhões em bens doados – denuncia uma rotina de doutrinamento, expropriação, trabalhos forçados e toda sorte de restrições em uma comunidade de São Vicente de Minas, no Sul do estado, a 263 quilômetros de Belo Horizonte. O primeiro contato da costureira O.M., de 37 anos, com o grupo ocorreu em 2000. Ela morava com o marido e filhos em Itaim Paulista (SP) e, influenciada pelo companheiro, passou a viajar para a capital do estado especialmente para frequentar o templo. Não demorou muito, se desfez da casa que havia herdado da mãe, vendeu móveis e tudo o que tinha para doar o dinheiro ao grupo religioso, com a promessa de viver com a família em uma comunidade onde tudo seria de todos. Foi assim que começou seu drama. “Eles me iludiram. Fui para lá. Vendi a casa, doei tudo, até os móveis. Depois, saí sem nada”, lamenta ela, que hoje vive em uma casa alugada em São Vicente de Minas e conta com ajuda de parentes e doações de cestas básicas para sobreviver. “Eu e os meus seis filhos saímos da comunidade com a roupa do corpo e três colchões velhos“, denuncia.

Na segunda-feira, a PF desencadeou a operação De volta a Canaã, para prender integrantes da seita acusados de estelionato, lavagem de dinheiro e de manter pessoas trabalhando em situação análoga à escravidão, em Minas, São Paulo e Bahia. Seis líderes do grupo foram presos e 47 envolvidos foram conduzidos para depor. Foram cumpridos seis mandados de busca e apreensão e 70 ordens de sequestro de bens, como fazendas, carros e casas de luxo, estabelecimentos comerciais e imóveis espalhados por seis cidades mineiras das regiões Sul e Campo das Vertentes. O.M. ficou feliz com a notícia. Ainda tem esperança de reaver o que perdeu.

Foram 12 anos trabalhando sem salário em propriedades da seita. A costureira se acha corajosa por ter abandonado o grupo. “Enfrentei tudo para sair. O que a polícia está falando é verdade: até o líder religioso com quem eu convivi por seis anos não era quem a gente pensava”, denuncia. “Falavam que, se a gente fosse embora, seríamos amaldiçoados. Mas, antes, prometiam ajuda a quem desistisse, que pagariam três meses de aluguel e dariam todo o tipo de assistência. Saí em agosto de 2013 e meu marido saiu dois meses depois. Mas eu não quis mais ficar com ele“, conta.

A ex-seguidora sustenta que o grupo usou da sua fragilidade para convencê-la a entregar tudo o que tinha. “Eu era imatura, cheia de filhos. Minha mãe tinha acabado de morrer e meu padrasto era violento. Hoje, a minha sensação é de injustiça. Fico revoltada quando vejo os líderes da seita andando de BMW e Hilux e eu aqui, sem nada“, reclama. Ela conta que, por um tempo, o ex-marido permaneceu empregado fora da organização, doando todo o salário, na época R$ 1,2 mil. Quando largou o serviço para trabalhar de graça para a comunidade, transferiu até o Fundo de Garantia.

CENSURA E RESTRIÇÕES Na comunidade, havia regras para tudo, diz O.M.. “Dormíamos todos em alojamentos. Eu e minhas filhas, em um galpão com mais de 30 pessoas; os homens em outro galpão. Sexo, só para procriação e não para o deleite, como diziam. Encontros íntimos, só de vez em quando. Cheguei a ficar três anos sem relações com meu marido”, disse ela. A programação de TV também era censurada. “Só permitiam noticiários e os filmes evangélicos que eles passavam. Não podíamos nem ouvir rádio, só louvores“, conta.

As refeições eram feitas para todos, segundo O.M.. O sino soava pontualmente às 6h30, quando todo mundo tinha que estar de pé. O café coletivo era servido das 6h às 8h30. Pão, só aos domingos. Nos outros dias, cuscuz, mandioca ou batata-doce cozida para acompanhar o café com leite. O almoço era das 11h às 13h – a única refeição com carne. O jantar, das 18h às 20h. Os cultos eram celebrados nos fins da tarde.

Nesse contexto de privação, líderes da comunidade tinham privilégios, sustenta a ex-seguidora. Alguns viviam em imóveis de luxo na cidade, e mesmo os que moravam na fazenda tinham tratamento diferenciado, disse. “Eu morria de vontade de comer um chocolate, tomar um vinho, uma cervejinha. Mas, para muitos, bebida é pecado. Mesmo assim, entrava bebida escondida na fazenda.”

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Quando decidiu sair, a costureira conta ter enfrentado muita dificuldade para recomeçar a vida com seis filhos, dois nascidos na comunidade. “Fiz um curso e consegui emprego em uma fábrica de calçados.” Mas, ainda em 2013, ela conta que precisou abandonar o trabalho para cuidar do filho de 13 anos, diagnosticado com um tumor na cabeça. “Fiquei desesperada e procurei o grupo para pedir ajuda. Não me deram assistência. Para falar a verdade, me deram uma geladeira velha e quatro camas caindo aos pedaços. Hoje, sobrevivo com a pensão dos meus filhos e com o dinheiro da Previdência, por causa do meu filho doente“, disse.

“Minha sorte é que encontrei aqui fora muita gente de coração bom, pessoas que me ajudaram sem ficar brincando com a fé em Deus. Apesar de tudo, minha fé é inabalável. E é Deus que tem me ajudado“, disse, emocionada. “Chegaram a dizer que o tumor na cabeça do meu filho era maldição, por eu ter saído da seita. Não acredito nisso“, conta.

Na comunidade, até as crianças trabalhavam, segundo ela. “Meu menino com 9 anos já tirava leite no curral. A de 11 cuidava dos cavalos e também ajudava a tirar leite”, relatou. Outra filha completou 16 anos e foi levada para trabalhar em um restaurante da comunidade, em Pouso Alegre, Sul de Minas.

Com o dinheiro de suas atividades, líderes da seita compraram em São Vicente de Minas posto de combustível, loja de roupas, centro automotivo, quitanda, pastelarias e vários outros empreendimentos comerciais, além de imóveis de luxo. “Eles já venderam muita coisa, como pastelaria e o mercado. Muita gente deles já foi embora, para outras fazendas em São Paulo e Bahia. Vão criando ramificações”, alerta a seguidora que escapou do grupo.


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