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Estado de Minas

Filhos pequenos de mães presas cumprem sentença para a qual não foram condenados

Na segunda matéria da série sobre o universo feminino na prisão, EM mostra o drama das mães separadas da família. Elas têm na saudade um castigo a mais a ser enfrentado na cela


postado em 17/03/2014 06:00 / atualizado em 17/03/2014 07:14

Patrícia Giudice

 

Elas do lado de dentro, os pequenos do lado de fora. Entre eles, um muro de saudade. Mães que não acompanham o dever de casa, não vão a reuniões escolares, não colocam as crianças para dormir. Filhos sem o carinho de todo dia, o puxão de orelha a cada bagunça, sem o acolhimento que só a figura materna pode oferecer. Assim crescem aqueles que estão separados das mães pelo crime que as levou para a prisão. Além do tormento da separação, as detentas sofrem à distância e se preocupam com o que será do futuro da família, e em como fazer para que não fiquem marcas do presente. São pensamentos que ocupam a mente de Gleici, que tem quatro filhos e um neto. Dilemas semelhantes aos de Cíntia, mãe de cinco pequenos.

Erlana realizou dentro da cadeia o sonho de ter um menino. Agora, vive o pesadelo da separação que se aproxima (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Erlana realizou dentro da cadeia o sonho de ter um menino. Agora, vive o pesadelo da separação que se aproxima (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
As duas estão no Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade com os caçulas e só pensam em voltar ao lar e reconstruir a família. Denismara está no Presídio Feminino José Abranches e lhe dói ver, todos os dias de visita, a filha de 8 anos chegar cedo para a fila e sair a tempo de ver o pai, preso ali perto. Diretora-geral do Centro de Referência, Margarete Rodrigues Moreira está no posto há pouco mais de três anos. Mãe de uma menina de 1 ano e 8 meses, sofre cada vez que vê uma separação, um pequeno que vai embora chorando no dia de visita. Viveu sua gestação em meio às mulheres privadas de liberdade também grávidas ou com filhos de até 1 ano. “Mudei minha percepção sobre elas. Agora entendo essa angústia e penso: e se fosse com a minha filha?”, reflete a diretora-geral.

O marido estava envolvido com o tráfico de drogas em Betim. Foi preso e Gleicilene Gomes de Jesus, de 39 anos, passou a ser referência nos “negócios” na Região do Petrovale, em Betim, Grande BH. Com o marido trancafiado, ela engravidou nas visitas íntimas. Logo foi pega pela polícia em uma escuta telefônica, em maio de 2012. Foi para o Ceresp Centro-Sul e passou 15 dias na Penitenciária Estevão Pinto. Foi só lá que descobriu que esperava Grazieli, agora com 1 ano e 3 meses. Está casada há 18 anos e foi condenada a cumprir pena de 15 anos e oito meses.

Quando sair do Centro de Referência, volta para a Estevão Pinto ou vai para o Presídio José Abranches, em Ribeirão das Neves, não para casa. Ele está na prisão há nove anos. Ela ainda sonha em sair e viverem juntos. Mesmo com a condenação, Gleicilene espera poder em breve cumprir pelo menos o regime semiaberto. O advogado está recorrendo e um apelo são os filhos. Gleici, como é conhecida, também é mãe de Jéssica, de 18 anos, de dois meninos, de 16 e 4 anos, e de outra menina, de 12. A filha mais velha – que tem um filho de 1 ano e três meses, quase a idade da tia, o bebê Grazieli – cuida de todos os irmãos enquanto a mãe está presa. “Ela é quem vem me visitar, mas é difícil, porque toma conta de todos e eles não podem vir”, diz.

O coração fica apertado de saudade dos pequenos. O mais novo fica na escola integral e, segundo Gleici, chorava muito quando ia visitá-la. A cada 15 dias ela liga para eles, momento em que tenta manter a família de pé. “É difícil. A mãe é quem segura tudo. Sinto que sem eu tudo fica desestruturado. Mas sempre digo a eles que me arrependo do que fiz e que não quero que eles passem por isso. Eu e meu marido nunca aceitamos que eles fizessem nada de errado.” Gleici trabalha na cozinha do Centro de Referência. É lá que sonha com o dia em que vai sair. Quer montar um restaurante ou abrir um negócio. Desta vez, com tudo dentro da linha.

O sonho de Erlana Afonsina do Porto, de 33, era ter um menino. Teve e agora vive uma contagem regressiva. Cada dia que o pequeno, de seis meses, ganha de vida é menos um que os dois ficarão juntos. Ela é de Iapu, no Vale do Aço, onde foi presa e levada para o presídio de Inhapim. Grávida, foi transferida para Vespasiano, na Grande BH. A cerca de 250 quilômetros de distância ficaram as duas filhas, de 13 e 17 anos. “Só quero sair daqui e vê-las.” Sobre o crime, conta apenas que se envolveu com um rapaz e que gosta dele. Ele está preso em Governador Valadares. Os dois se comunicam por cartas. “Nunca vendi drogas, nunca roubei nada de ninguém”, ela se limita a dizer. Condenada a 11 anos e 10 meses, recorre para tentar diminuir a pena e manda cartas para a presidente Dilma Rousseff, suplicando liberdade. É o sonho comum de todas as detentas que querem vencer as grades que as separam dos filhos.


Cíntia e a mais nova das cinco meninas: droga guardada em casa e marido preso como cúmplice (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Cíntia e a mais nova das cinco meninas: droga guardada em casa e marido preso como cúmplice (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)


Coração de mãe engaiolado

Uma renda semanal de quase R$ 2.000. Rápido, fácil, mas com consequências irreversíveis. Cíntia Vieira Gonçalves, de 32 anos, foi envolvida pelo tráfico. Na possibilidade de ganhar dinheiro sem fazer esforço, começou a guardar droga em casa para um amigo, no Bairro Céu Azul, Região da Pampulha, em BH. Escondia no forno micro-ondas, sem o marido saber. Ele, como ela conta, é um jovem trabalhador de carteira assinada, honesto e sem muitas ambições. Só queria estar junto da família. Para ele, bastava isso para ser feliz. Para ela, não.

Foi condenada a sete anos e seis meses, sendo quatro anos e um mês no regime fechado e o restante no semiaberto. Já cumpriu um ano e dois meses. Seu maior remorso: como ela foi pega em casa com droga, o marido foi levado junto e está preso também. “Corro mais atrás da liberdade dele do que da minha. Eu me arrependo mais por ele, que não tinha culpa de nada.” Juntos, os dois têm cinco meninas, de 16, 14, 12, 2 e a pequena Huiara, de 6 meses, que está com a mãe no Centro de Referência. As outras ficam com a mãe de Cíntia, mas mal suportam a distância. “É saudade demais. Mas agora é esperar para recomeçar.”

O recomeço será ao lado do marido, com quem se comunica por cartas. Fazem juras de amor. “Ele diz que quer ficar comigo, que me perdoou. Mas eu não me perdoo.” Cíntia não está presa pela primeira vez. Pelo mesmo motivo foi pega no Dia das Mães de 2007. Foi quando o companheiro descobriu o que fazia e como ganhava dinheiro. Não aceitou, pediu para ela parar, mas confiou que aquilo não aconteceria de novo. Em vão. Em 2012, ela foi detida novamente. “É muito difícil. Sinto falta das minhas filhas e elas de mim. Sinto saudades dele e espero que ele saia antes, porque é réu primário.”

Sirlene com a filha de 3 meses: expectativa pela liberdade e desafio de dar novo rumo à família (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Sirlene com a filha de 3 meses: expectativa pela liberdade e desafio de dar novo rumo à família (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)


O SONHO DA LIBERDADE

A cada visita que recebe, Sirlene Silva dos Santos, de 33 anos, manda de volta para a casa um pouco dos seus pertences e da filha Pérola, de 3 meses. Para elas, o cadeado será destrancado em breve. Sirlene foi presa pela segunda vez por envolvimento com o tráfico, junto com o marido. Ele está na cadeia de Vespasiano. Estão casados há 11 anos.

Já teve a mesma sensação antes, de estar perto da liberdade, mas foi pega numa operação da Polícia Militar no Bairro Morro Alto, onde mora. Lá deixou, vivendo com parentes, um filho de 15 anos e outro de 9. Para sua saída, só faltava chegar às mãos da diretora do Centro de Referência a autorização judicial. Já tinha recebido a informação de que o documento havia sido expedido.

O mesmo aguarda o marido. Na volta para a casa, os planos são muitos: trabalhar, reunir os filhos novamente, zelar para que eles não caiam no crime. “Tentação sempre vai ter. O dinheiro é fácil. Mas não quero mais, quero mudança. Prometi para os meus filhos que nunca mais seria presa e vou cumprir.” Recentemente, ficou uma semana livre, em uma espécie de condicional para saber se está preparada para sair. Todo o tempo foi dedicado aos filhos. Passearam, fizeram almoço, dormiram juntos, se abraçaram. “Quero ter uma vida como a de todo mundo”, é o que pensa, ansiosa e nervosa, desde o dia em que recebeu a notícia de que ficaria livre.

O DIA COMUM QUE ACABOU NA CADEIA


Era 2 de novembro de 2012. Denismara Mariana, de 29, acordou às 5h30, como todos os dias. Deixou a filha de 8 anos na escola e seguiu para o trabalho no Bairro Prado, em Belo Horizonte. A viagem de Esmeraldas, na Grande BH, até o local onde funcionava o serviço de telemarketing era longa, mas ela não desistia. Por volta das 12h, uma vizinha buscava a criança na escola e com ela ficava até a mãe retornar, por volta das 19h. Naquele dia, Denismara ainda passou no supermercado, comprou mantimentos para a casa e para o lanche da menina. Lembra-se bem da rotina: “Cheguei em casa, guardei as compras, e minha filha já estava lá. Fizemos os deveres da escola, vimos um pouco de televisão. Ela dormiu e eu fui para a cama também”. O marido, motoboy, de 27, que, por causa de um acidente, recebia auxílio-doença e estava sem trabalho, chegou às 23h30. Trazia uma bolsa com drogas, armas e munição.

Os dois discutiram, Denismara não queria aquilo na casa dela, onde estava a filha. Queria preservá-la de tudo em que o pai estava envolvido. Mas chovia naquela noite e ela resolveu ceder. Pediu que no dia seguinte cedo ele levasse tudo embora. Não deu tempo. “A polícia estava monitorando. Chegou minutos depois que ele, acho que foi uma denúncia anônima.” A pequena acordou com o barulho da operação. Como não tinha com quem ficar, seguiu na viatura junto com os pais para o Ceresp Centro-Sul. O pai algemado, a mãe abraçada à filha. Denismara ainda tinha a esperança de que não ficaria presa. Em vão.

A partir daí, a rotina da criança mudou. Ela teve de se mudar para a casa da avó, no Bairro Serra, em Belo Horizonte. Mudou também de escola e de colegas. No fim de semana, não se arruma mais para ir passear com o pai ou ir ao parque com a mãe. Coloca uma roupa bonita, ajuda a avó a separar alguns alimentos e segue para o Presídio José Abranches. Vai de manhã para ver a mãe. À tarde, no mesmo caminho, em Ribeirão das Neves, vai com a avó ver o pai no Complexo Prisional Público-Privado.

Denismara foi condenada a 11 anos e três meses por associação ao tráfico. A Justiça entendeu que foi conivente com o marido. Cumpre dois quintos da pena em regime fechado e depois segue para o semiaberto. “Minha filha ficou sem os dois, a vida mudou toda. Só penso em sair logo e ficar com ela. Eu não tinha nada a ver com aquilo.” Denismara conversa com o marido por cartas e em todas, diz, ele pede perdão, promete que vai mudar de vida. “Eu imaginava que uma hora ou outra ele seria preso, mas eu, não.” Hoje, diz que não sabe se a união de 14 anos vai acabar quando eles se reencontrarem do lado de fora, mas não esconde que o ama. “Às vezes sinto raiva, mágoa, mas gosto dele.” Também por cartas se comunica com a filha. Todas as respostas terminam com a mesma declaração: “Mãe, eu te amo”.


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