(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

Morte de testemunha desafia investigadores em Minas

Tratado como suicídio em apuração cheia de brechas, caso do Administrador hospitalar encontrado com um tiro na boca é reaberto por suspeita de queima de arquivo. Vítima sabia demais sobre rombo em hospital onde agiria máfia dos transplantes


postado em 27/02/2013 06:00 / atualizado em 27/02/2013 08:27

Vista do complexo da Santa Casa: apuração em 2006 indicou obras inauguradas duas vezes, descontrole de estoque e estrutura precária(foto: Marcos Michelin/EM/DA Press)
Vista do complexo da Santa Casa: apuração em 2006 indicou obras inauguradas duas vezes, descontrole de estoque e estrutura precária (foto: Marcos Michelin/EM/DA Press)


Poços de Caldas –
O escândalo provocado pela reabertura dos casos referentes ao que a Justiça considera a atuação de uma máfia de transplantes na Santa Casa de Misericórdia de Poços de Caldas, no Sul de Minas, pode ir muito além das denúncias de tráfico de órgãos, já suficientemente graves. No rastro de um rombo de R$ 10 milhões identificado nas contas do hospital – onde atuava o grupo de médicos acusado de remover irregularmente e comercializar vísceras e tecidos humanos –, a morte violenta do administrador da unidade de saúde, Carlos Henrique Marcondes, o Carlão, em 24 de abril de 2002, considerada pela Polícia Civil como suicídio, voltou a ser investigada no ano passado com suspeita de ser uma queima de arquivo. Reforçam a desconfiança situações estranhas, como a destruição da suposta arma do crime sem que fosse feito teste de balística, a falta de exame residuográfico de pólvora nas mãos do suposto suicida, que foram lavadas e enfaixadas após a morte, além da limpeza do carro em que a vítima morreu, sem qualquer perícia.

A morte ocorreu no que seria o auge da atuação do grupo investigado pela morte de pacientes para tráfico de órgãos e desvio dinheiro da Santa Casa. No primeiro processo julgado, referente ao óbito e remoção de órgãos do pedreiro José Domingos Carvalho, morto aos 38 anos em 2001, quatro médicos foram condenados a penas de 8 a 11 anos e meio de prisão em regime fechado, em primeira instância, e respondem em liberdade. A possível associação entre os crimes foi levantada na época pela própria promotoria da comarca, que criticou a atuação da Polícia Civil nas investigações sobre a morte de Carlão.

Na época, o promotor Wagner Iemini Carvalho levantou a possibilidade de conexão entre os episódios: “Os últimos acontecimentos na vida de Carlos, sabido por todos, indicam claramente que ele era uma vítima em potencial”, devido ao “escândalo que envolveu a Santa Casa local (suspensão dos transplantes por denúncias de homicídios de pacientes para tráfico de órgãos)”. “Não temos elementos seguros para afirmar que trata-se de suicídio, nem podemos falar com segurança que houve homicídio”, escreveu, na época. Porém, em vez de pedir mais investigações, o MP de Poços de Caldas abandonou o caso com esse parecer, restando à Justiça arquivá-lo.

As apurações só foram reabertas quando a promotora Sophia Sousa de Mesquista David, que antes atuava em Brumadinho, na Grande BH, chegou à comarca de Poços de Caldas. Percebendo inúmeras lacunas no inquérito, ela solicitou que as apurações fossem retomadas, poucos meses antes de ser transferida para Paracatu, no Noroeste mineiro. O pedido de reabertura foi aceito pela 1ª Vara Criminal de Poços de Caldas, diante do que foram consideradas graves inconsistências nas investigações, levantando suspeitas de que a morte tenha sido uma execução para calar o administrador.

MÃOS ENFAIXADAS Carlão saiu de sua casa, na noite de 23 de abril de 2002, para “uma reunião na Santa Casa”, que passava por grave crise. Ele deveria apresentar laudo com detalhes sobre a saúde financeira do hospital no dia seguinte. Na manhã do dia 24, o administrador foi encontrado morto, com um tiro na boca. Começava aí, de acordo com relato da promotora que culminou na reabertura do processo, uma sequência de inconsistências nas investigações.
A provável arma do crime, um revólver calibre 38, e sua munição, não foram periciados para comprovar se o tiro fatal partiu da arma. Ambos foram entregues ao Exército e destruídos. Antes de qualquer exame para detectar resíduos de pólvora no corpo, no necrotério, as mãos da vítima foram lavadas, raspadas e depois enfaixadas. Isso impossibilitou um exame para saber se Carlão tinha usado a arma de fogo contra si mesmo. Outro ponto nebuloso, segundo o MP, é que um ex-policial militar, advogado da Santa Casa, retirou o carro da vítima da delegacia e mandou lavá-lo, apresentando-se como representante da família, o que foi negado na época pela viúva.

Apesar da reviravolta representada pelo pedido do MP, desde a reabertura do caso o processo continua a passos lentos. A Polícia Civil só teria ouvido uma testemunha, em 14 de novembro do ano passado. O delegado regional de Poços de Caldas, Gustavo Henrique Magalhães, nega que haja morosidade. “Realizamos outros trabalhos, como escutas telefônicas e procedimentos que não posso informar. Mas tudo o que o juiz nos pediu foi apurado, ainda que não apresentasse os resultados que ele queria”, afirma o policial.

Maquiagem contábil disfarça caos

Por trás das suspeitas de queima de arquivo na morte do então administrador da Santa Casa de Poços de Caldas, Carlos Henrique Marcondes, o Carlão, em 2002, está uma lista de irregularidades, suspeitas de má gestão, maquiagem de contabilidade e desvio de recursos da unidade. Elas foram evidenciadas em 2006, quando a Câmara Municipal de Poços de Caldas enviou ao Ministério Público o relatório denominado “Irregularidades no gerenciamento do Hospital da Santa Casa de Poços de Caldas”. Nele constam resultados de auditorias particulares, feitas a pedido da prefeitura da cidade do Sul de Minas, quando esta recebeu solicitação de recursos para “salvar a Santa Casa”, que se encontrava praticamente falida, com dívidas de R$ 10 milhões. A promotoria local recebeu e engavetou o relatório, alegando tratar-se de “instituição privada”, ainda que concentrasse quase 90% de suas ações pelo Sistema Único de Saúde, gerenciando recursos públicos para insumos e equipamentos.

O requerimento inicial para a doação partiu do Conselho Municipal de Saúde, em 2005, em uma audiência pública, tendo em vista a saturação de outras unidades de saúde da região. Entre as sugestões levantadas para contornar a crise na Santa Casa estava exatamente a volta dos transplantes, procedimento para o qual o hospital foi descredenciado pelo SUS em 2001, após as primeiras denúncias de tráfico de órgãos. Segundo o então presidente do Conselho Curador da Santa Casa, Marcos de Carvalho Dias, a situação de penúria na época havia se dado por causa das “irregularidades apontadas nos procedimentos técnicos e administrativos do hospital. A Santa Casa passou a ser alvo de frequentes auditorias”. Ele chegou a admitir falhas graves na unidade, que “trabalhou por anos sem cumprir normas mínimas de pessoal de enfermagem, médicos plantonistas e aspectos arquitetônicos”.

ROMBOS Em 2002, o trio que controlava a Irmandade Santa Casa era composto pelo diretor administrativo Carlos Henrique Marcondes, o Carlão, o provedor, José Martinho Prado Luz, e a diretora clínica, Maria Regina Cioffi Batagini. Os três informaram que a dívida era de R$ 500 mil por mês e que havia um rombo bancário de R$ 3,9 milhões. Assim, a Câmara propôs à prefeitura local uma intervenção pactuada, desde que com a apresentação detalhada dos déficits e de duas auditorias independentes. No dia marcado para a apresentação, o diretor administrativo foi encontrado morto dentro de seu carro.

Auditoria mostra festival de desvios

Em três meses de trabalho, as auditorias na Santa casa de Poços indicaram uma série de irregularidades administrativas e contábeis que reduziram o capital social da instituição de R$ 7,5 milhões, em 2001, para R$ 2,5 milhões negativos. Foram pelo menos R$ 10 milhões sugados de 1997 a 2001. A dívida bancária, apresentada no valor de R$ 3,9 milhões, na verdade foi estipulada em R$ 6 milhões depois das apurações. Uma das auditorias independentes, da Deloitte Touche Tomatsu, resumiu as condições encontradas: “Falta absoluta de controle, inclusive sobre o uso particular de medicamentos e equipamentos pelos médicos”.

Indícios de desvios que poderiam estar alimentando os beneficiários das irregularidades identificadas pelo Ministério Público estavam em todo lugar, como observou a Deloitte. “Falta uma política de controle de estoques. O inventário físico não corresponde ao contábil e vice-versa.” A auditoria encontrou estoque físico 50% menor do que o descrito na prestação de contas, além de pedidos de compra sem cotação de preço, emitidos na chegada da mercadoria, com ou sem nota fiscal. “A maioria dos serviços de terceiros era feita sem contrato e paga sem nota. Centenas de notas de despesa de viagem e suprimentos de caixa para despesas futuras sem qualquer comprovação (foram detectadas)”.

Foram observadas ainda repetições de gastos, possivelmente para encobrir retiradas indevidas, como duas entregas em anos diferentes das mesmas “novas salas cirúrgicas”, por US$ 300 mil, duas instalações da mesma caldeira a vapor, duas da mesma sala de urgência e emergência e três da usina de gás GLP. Outro problema é que não havia prestação de contas nem reuniões previstas no estatuto da irmandade. Ainda assim, ninguém da instituição questionava isso.

A equipe do Estado de Minas foi ao hospital, na tentativa de ouvir representantes sobre as denúncias de tráfico de órgãos que teria ocorrido nas suas dependências, assim como sobre as questões financeiras, mas não foi recebida e nem foi designado um porta-voz para comentar o caso. Em nota, a Santa Casa informou que nenhum dos médicos investigados atua mais na unidade, que também nega envolvimento com a máfia dos transplantes.

Sob apuração Ontem, o EM mostrou que há nove casos sob investigação referentes à suspeita de tráfico de órgãos. A primeira sentença referente a eles foi divulgada na semana passada. Nela foram condenados em primeira instância quatro médicos. Alexandre Crispino Zincone, de 48 anos, recebeu pena de 11 anos e seis meses de prisão; João Alberto Goés Brandão, de 44, Celso Roberto Frasson Scafi, de 50, e Cláudio Rogério Carneiro Fernandes, de 53, foram condenados a oito anos cada um. As penas de Félix Herman Gamarra Alcântara, de 71, e Gérsio Zincone, de 77, caducaram, devido ao fato de serem maiores de 70 anos, mas acusações a que respondiam foram consideradas procedentes. A defesa dos réus informou já ter recorrido da decisão.

A condenação só saiu depois da designação de autoridades de fora para assumir os casos. Os trabalhos do Ministério Público passaram às mãos do Centro de Apoio às Promotorias Criminais (Cao-Crim), sediado em BH. O juiz da 1ª Vara Criminal de Poços de Caldas, Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, responsável pela primeira sentença, disse ontem que os promotores locais, quando deixaram de atuar no processo, “fizeram-no declarando a suspeição prevista na legislação em vigor”. “Informo ainda que tenho ótimo relacionamento com os promotores da cidade e com o Ministério Público de Belo Horizonte, que têm agido com grande empenho e lisura”, afirmou, em nota.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)