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Estado de Minas

Ex-camareira de 86 anos elege Edifício Maletta uma paixão de vida

Para homenagear arranha-céu, ela pinta quadro e escreve livro


postado em 18/04/2012 06:00 / atualizado em 18/04/2012 06:47

Quem vê a elegante senhorinha de longe, com 1,35m, cabelos brancos bem cortados, de passos rápidos e material de pintura sob o braço não faz ideia da enormidade que habita em seu coração. Um prédio inteiro, com 319 apartamentos, 642 salas, 72 lojas e 74 sobrelojas representa o céu para Esmeralina Costa de Oliveira, de 86 anos. Desde os anos 1950, o Edifício Arcângelo Maletta faz parte da vida da ex-camareira, nascida em Oliveira, Região Centro-Oeste de Minas Gerais.

As mãos desenhadas pelo tempo seguram a velha fotografia de família – tirada logo que ela se mudou para Belo Horizonte. Na cena, Esmeralina, pequenina, aos 4 anos, entre os pais no Parque Municipal Américo Renné Giannetti. No 26º andar, no imóvel comprado “com muito suor”, encapados, cheios de letras manuscritas, dezenas de diários recheados de histórias. “Pedaços da minha vida”, sorri. Orgulhosa, exibe as plantas que ocupam boa parte da sala. “É minha pequena Amazônia”. Divertida, conta que chegou a ter uma árvore de mogno que chegou ao teto.

Pela casa, duas dezenas de quadros espalhados, inspirados na natureza e na capital mineira. Um em especial, quase do tamanho da autora, luminoso, de esquina: o Maletta, romântico, retratado sob o olhar da vista comprometida e cansada da ex-camareira. Amador. Porém, coisa de estudiosa, aplicada, entendida de traços, grafite e aquarela. Em 2006, aos 80 anos, dona Esmeralina virou assunto no condôminio ao concluir o ensino médio e encarar vestibular para belas-artes. Não passou. Ainda assim, determinada, não desistiu e emendou cursos livres em busca de técnica.

Nem é preciso ser especialista para notar que Esmeralina aprendeu a pintar com a mesma desenvoltura e coragem que a levaram à escrita, apurada já na melhor idade. A combinação de amores – literatura e artes plásticas – resulta agora em dupla homenagem ao arranha-céu em que mora, declaradamente uma de suas maiores paixões. Além do quadro, no computador – ela já domina o básico para escrever e pesquisar mundo afora –, há também o rascunho de um livro autobiográfico intitulado Um grão de areia no universo, onde conta personagens e histórias vividas no Maletta.

Incansável, praticante de ginástica todas as manhãs, a ex-camareira é senhora de muitas artes. Ao abrir as portinhas da estante, Esmeralina traz à mesa recortes, medalha de premiações e diploma de esperanto. “Mas aí, a gente não tem com quem conversar e desaprende tudo. Uma pena”, lamenta. Entre os documentos, destaque em Talentos da Maturidade em Literatura e em Artes Plásticas, além de premiação em poesia. “Guardo tudo. É papel que não acaba mais, não é!?”, brinca.

Superação

Mãe de filho único, Esmeralina é só felicidade com Damião. “Tenho muito orgulho dele, porque sou caipira e ele, formado em direito, não tem nenhuma vergonha de mim”, diz. A ex-camareira, de família muito pobre e “passado de fome e muitas surras”, não gosta de falar sobre seus dissabores. “Tudo o que é bom eu guardo. Não gosto das lembranças tristes”, ressalta. Ainda assim, abre o baú de infelicidades para contar que de 11 filhos “apenas Damião vingou”.

“A história da minha família dá uma novela, meu filho. Aos 15 anos, perdi minha mãe durante o 19º trabalho de parto. Meu pai se casou novamente e arranjaram casamento para mim com o irmão da minha madrasta. Veja só… fui tia e irmã de mais 10 filhos que o meu pai teve. Aos 26, depois de um filho depois do outro, todo ano, inclusive dois gêmeos, fiquei viúva. Alguns já nasceram mortos e outros morreram pouco tempo depois de nascer”, relembra, com os olhos vivos e profundos.

A conquista com a faxina

O salto na vida de poucos recursos veio por meio da faxina no Conjunto Santa Maria, onde foi faxineira, ascensorista, porteira e vigia. “Eles gostaram do meu serviço e me deram muita faxina. Tanto que montei uma empresa de limpeza. Tudo com o meu filho me ajudando muito. Ele nunca saiu de perto de mim. Depois de muita luta, viemos para o Maletta, em 31 de julho de 1974”, conta.

Ao falar do edifício histórico de BH, que a acolheu, ritmo da fala e olhar mudam. Conta da coletânea de memórias em fase de revisão e mostra o quadro terminado há duas semanas.

Traz para a mesa O grande hotel, livro de Luís Góes, uma de suas principais fontes de pesquisa para a empreitada da homenagem. Pausa no mundaréu de lembranças e traz Deus para a conversa, dizendo-se mais kardecista. “Agradeço todos os dias. Por tudo. Veja só que formação religiosa é a minha: pela manhã cresci na Igreja Católica; à tarde entre protestantes; à noite no centro espírita. Aprendi a confiar no amor de Deus e acreditar muito em Jesus”, revela.

De tempos de sombras na Avenida Augusto de Lima, Esmeralina lista aborrecimentos que enfrentou com a antiga administração, entre 1974 e 2005. Diz que nem os anos de chateações seguidas por desentendimentos com o ex-síndico foram suficientes para afetar sua alegria em morar no prédio, “o mais importante de toda a história cultural da cidade”. Para findar a conversa, ajeita os óculos, abre o sorrisão bonito e resume sua obra em lápis e pincel: “Meu filho, deixei o inferno, larguei uma vida esfarrapada na Vila Futuro, hoje Bairro Caiçara, e vim ser feliz no Maletta”.

ENQUANTO ISSO...
... TOMBAMENTO EM DISCUSSÃO

Nos elevadores e corredores do Edifício Arcângelo Maletta o panfleto explica o que é tombamento. “…é concedido ao bem cultural um atributo para que nele se garanta a continuidade da memória…”. Segundo o síndico, Amauri Batista dos Reis, o impresso é para desfazer o mal- entendido entre alguns sujeitos que espalharam que o prédio estava para ser derrubado. Desde janeiro, a administração discute a possibilidade de encaminhar pedido de tombamento do prédio ao Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte. “O Maletta precisa de reforma. Entendemos que o tombamento possa ajudar a preservar melhor o prédio, mas é preciso que a maioria esteja de acordo”, explica Amauri.

UM GRÃO DE AREIA NO UNIVERSO

“Outra pessoa interessante foi o jornaleiro José do Carmo, conhecido por Tostão ou Sapo. Homem de baixa estatura, cabeça grande, olhos arregalados, voz rouca e possante. Assim era o nosso saudoso Tostão, algumas pessoas dizem que ele foi assassinado…”
(Trecho de uma das histórias de Esmeralina Oliveira)


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