"Safari Humano": as caçadas sádicas dos Italianos ricos na Guerra da Bósnia
Autoridades italianas investigam denúncias de turistas que teriam pago até £88 mil (R$ 600 mil) para "caçar" moradores de Sarajevo
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A justiça italiana anunciou neste mês de novembro a reabertura de uma investigação chocante envolvendo cidadãos italianos ricos que teriam participado de um chamado "safari humano" durante a Guerra da Bósnia (1992-1995). O caso, que veio à tona em 1997, retorna aos holofotes após novas evidências e testemunhos coletados por promotores em Milão e Roma, prometendo lançar luz sobre um dos episódios mais macabros do conflito nos Bálcãs.
Durante a guerra civil na Bósnia, que deixou mais de 100 mil mortos e milhões de deslocados, relatos surgiram sobre grupos de estrangeiros ricos – principalmente europeus ocidentais – que viajavam à Bósnia para participar de atividades sádicas. Esses "safaris" envolviam a caça e execução de prisioneiros de guerra, especialmente muçulmanos bósnios, em zonas controladas por forças sérvias.
A investigação conduzida pelas autoridades italianas apura relatos de que cidadãos italianos, canadenses, russos e norte-americanos teriam pago valores entre £70 mil e £88 mil (R$ 487 mil a R$ 600 mil) para participar de atividades ilícitas descritas como "caçadas humanas" em Sarajevo, com preços ainda mais elevados quando as vítimas eram crianças.
O termo "safari humano" foi popularizado por reportagens da época, como a do jornalista britânico Roy Gutman para a revista Newsday em 1997. Gutman relatou que pelo menos 20 grupos de "caçadores" estrangeiros visitaram campos como o de Omarska e o de Keraterm, com vídeos caseiros mostrando execuções filmadas como troféus.
Escândalo Italiano de 1997
Tudo começou com a prisão de Giancarlo Morganella, um empresário de Turim, em janeiro de 1997. Morganella foi flagrado com um vídeo caseiro de 20 minutos mostrando ele e outros dois italianos atirando em prisioneiros bósnios em 1994. O material, confiscado em sua casa, continha cenas explícitas: homens e mulheres acorrentados a postes, implorando por misericórdia, enquanto os "caçadores" riam e disparavam rajadas de fuzis AK-47.
Morganella confessou ter pago US$ 10 mil por uma viagem de três dias organizada por milícias sérvias. Ele nomeou outros participantes: Donatella Di Rosa (ex-mulher de um mafioso siciliano) e Alessandro Conte, ambos de famílias abastadas. Di Rosa, em particular, chocou o mundo ao ser identificada como uma das poucas mulheres envolvidas, atirando em uma prisioneira grávida.
A investigação inicial, conduzida pelo procurador Antonio Di Pietro, revelou uma rede de pelo menos 12 italianos – empresários, advogados e herdeiros de fortunas – que viajaram à Bósnia entre 1993 e 1995. Documentos apreendidos mostraram transferências bancárias para contas em Belgrado, e passaportes com carimbos de entrada em territórios sérvios.
Por que o caso foi arquivado?
Apesar das provas, o caso foi arquivado em 2000 por "falta de jurisdição". Os promotores argumentaram que os crimes ocorreram em território estrangeiro e que as vítimas não apresentaram queixas formais. Morganella cumpriu apenas 18 meses de prisão por porte ilegal de armas, enquanto Di Rosa e Conte escaparam sem punição. Críticos acusaram interferência política: muitos suspeitos tinham conexões com a elite econômica italiana e partidos de direita simpáticos aos sérvios.
A Reabertura da investigação
A virada veio em setembro de 2025, quando Emir Suljagi, sobrevivente do massacre de Srebrenica e atual membro da Comissão Bósnia-Herzegovina, forneceu à justiça italiana 30 horas de filmagens inéditas. Os vídeos, recuperados de um esconderijo em Pale (Sérvia), mostram rostos identificáveis de italianos em "safaris" em 1994. Análise forense confirmou a presença de Morganella e revelou novos nomes, incluindo Luca Bianchi, um banqueiro de Milão morto em 2018, e Giovanni Rossi, um construtor ainda vivo em Gênova.
A procuradoria de Milão, liderada por Francesco Greco, abriu inquérito por crimes contra a humanidade e assassinato agravado. Pela primeira vez, a Itália invoca a Convenção de Genebra e a jurisdição universal para julgar crimes de guerra cometidos no exterior. Testemunhas bósnias, como Fikret Ali (ícone da foto do campo de Omarska), foram chamadas a depor via videoconferência.
Reações e impacto
Autoridades Italianas: O ministro da Justiça, Carlo Nordio, prometeu "justiça sem exceções". No entanto, advogados dos suspeitos alegam prescrição e questionam a autenticidade dos vídeos.
Bósnia e Herzegovina: O presidente Eljka Cvijanovi elogiou a iniciativa, mas criticou a lentidão europeia em punir cúmplices estrangeiros.
Opinião Pública: Nas redes sociais italianas, o hashtag #SafariUmano viralizou, com pedidos de punição exemplar. Um abaixo-assinado online já reúne 150 mil assinaturas.
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O que esperar?
A primeira audiência está marcada para março de 2026. Especialistas preveem que, se condenados, os réus podem pegar prisões perpétuas, um precedente raro para crimes de guerra na Europa Ocidental. O caso também reacende debates sobre o turismo da morte e a responsabilidade de elites durante genocídios.
Enquanto isso, sobreviventes bósnios aguardam justiça após 30 anos. "Eles nos trataram como animais em um zoológico", disse Suljagi em entrevista à RAI. "Agora, que os caçadores sintam o peso da lei."