Pacientes acometidos pela afantasia podem ser incapazes de visualizar voluntariamente imagens mentais -  (crédito: Reprodução/ Redes Sociais)

Pacientes acometidos pela afantasia podem ser incapazes de visualizar voluntariamente imagens mentais

crédito: Reprodução/ Redes Sociais

Imagine que alguém te pediu para fechar os olhos e pensar em uma praia. Muito provavelmente, a imagem que surge em sua cabeça inclui pessoas sentadas na areia, talvez um guarda-sol e, certamente, a imensidão de um mar azul. No entanto, para algumas pessoas, fechar os olhos pode significar apenas uma tela preta. A afantasia é uma condição neurológica que torna mais difícil, às vezes impossível, a formação de imagens em nossas cabeças.

 

“Consigo lembrar quem são as pessoas, mas isso não é uma informação visual”, afirma a estudante de design Rafaela Rodriguez, de 20 anos. “Não vejo em minha cabeça, mas sei se alguém tem determinadas características”, explica.

 

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Pode parecer estranho, mas os afantásicos hoje representam uma parcela de aproximadamente 5% da população mundial. E, apesar de não se tratar de uma doença, conviver com a afantasia pode acarretar pequenas dificuldades no dia a dia, como lembrar de rostos ou formatos e cores objetos dentro dos pensamentos.

 

Origem do termo afantasia

 

O termo é recente e pode ser conhecido também como “mente cega” ou “imaginação cega”. Contudo, a condição foi descrita pela primeira vez ainda em 1880 pelo psicólogo britânico Francis Galton. Já a palavra aphantasia surgiu em 2015, em estudos da Universidade de Exeter, na Inglaterra, para denominar o quadro de pessoas incapazes de visualizar voluntariamente imagens mentais.

 

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“Uma questão de percepção”

 

A afantasia, no entanto, pode se manifestar em diversos níveis: de casos leves a quadros de afantásicos 100% incapazes de gerar memórias visuais. É o que explica o vice-presidente da Sociedade Mineira de Neurologia, Philipe Marques da Cunha.

 

“Muitas pessoas experimentam algum grau de afantasia. Contudo, como não se considera como um distúrbio ou doença maior, trata-se de uma questão de percepção mesmo. Muitas vezes, o paciente não vai nem mesmo perceber sua condição”, afirma o médico.

 

 

Graus de afantasia

A condição pode ser identificada em diferentes graus, desde de dificuldades mais leves até casos de afantasia total

Reprodução/ Redes Sociais

 

O especialista relata que diagnósticos são “difíceis”, tanto para os pacientes quanto para os médicos. Devido às pesquisas ainda recentes no país, não existem testes específicos. Assim, realmente apenas uma boa avaliação médica pode determinar quadros de afantasia.

 

Mecanismos de compensação

 

Mas, assim como uma pessoa cega pode experimentar um “aumento” em outros sentidos, os afantásicos também possuem mecanismos compensatórios que ajudam com tarefas diárias. É como se, ao invés de memorizar o rosto de alguém, você optasse por palavras que a descrevessem, ou mesmo tentasse decorar se essa pessoa usa óculos ou possui barba, por exemplo.

 

O vice-presidente da Sociedade Mineira de Neurologia explica que essas estratégias demonstram como o cérebro é capaz de se reconfigurar de acordo com as condições de cada indivíduo. Ele ressalta que nossas lembranças e memórias são elementos complexos, que somam diferentes funções de nossa mente. Por isso, os afantásicos também são capazes de memorizar, ainda que recorrendo a outros recursos.

 

Por outro lado, para quem passou a infância com medo dos monstros debaixo da cama, o médico lembra de um diferencial “benéfico” da afantasia. “Não conseguir imaginar coisas assustadoras ou estressantes pode ser um ponto de menor sofrimento para os pacientes”, comenta. Esse também pode ser o caso em sonhos e pesadelos, uma vez que afantasia também gera experiências menos visuais durante o sono.

 

Além das amarras da imaginação

 

Já tentou fazer um desenho e ficou decepcionado quando não ficou do jeito que imaginou?


Com certeza este não seria o caso de alguém que possui a afantasia ao decidir colocar uma ideia no papel. Contudo, a condição pode, inclusive, significar ir além das amarras da imaginação.

 

A artista plástica Rafaela Rodriguez, de 20 anos, é afantásica e explica que, ao contrário do que muitos pensariam, a arte não sai de sua cabeça, mas de sua mão. Estudante de design na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ela divide seus dias entre pinturas, ilustrações e o trabalho de tatuadora em um estúdio de Belo Horizonte.

 

Ela gerou curiosidade em suas redes sociais ao dividir o diagnóstico de afantasia. Afinal, como poderia alguém tão criativo ser incapaz de gerar imagens em sua própria cabeça?

 

“Se eu desenho uma maçã, eu não tenho a prisão de pensar como todo mundo pensa, pois eu não penso visualmente. Eu posso procurar estilizar de formas diferentes”, comenta.

 

Artista e tatuadora Rafaela Rodriguez

Aos 20 anos, Rafaela trabalha com tatuagens de artes autorais em Belo Horizonte

Arquivo pessoal/ Rafaela Roriguez

 

Diagnóstico demorado

 

Ao Estado de Minas, Rafaela disse que sempre soube que não possuía memórias visuais e que chegou a explicar o déficit para psicólogos. Imaginar carneirinhos antes de dormir ou lembrar de acontecimentos marcantes como se fossem “um filme em nossas cabeças”, nunca pareceu algo possível para ela. Ainda assim, o baixo reconhecimento da condição atrasou bastante o diagnóstico.

 

“A verdade é que ninguém cogita a possibilidade de você não conseguir imaginar, nem mesmo psicólogos”, diz a artista.

 

Foi apenas quando Rafaela descobriu o termo afantasia e procurou estudá-lo que passou a entender porque ao fechar os olhos “tudo fica preto”. Ou mesmo o motivo de não conseguir lembrar-se em pensamentos do rosto da mãe ou do namorado.

 

 

Ainda criança, seguindo os passos da avó materna, Rafaela descobriu o amor pela arte. Ao mesmo tempo, percebeu que desenhar algo “de cabeça” não era tão fácil como para outros de sua idade. Ela conta que sempre precisou estudar referências na hora de botar algo no papel e que, apesar das dificuldades, os esforços ajudaram a aprimorar sua técnica.

 

Para a tatuadora, visualizar o resultado de uma arte antes de produzi-la parece inconcebível. As ideias e o planejamento de um desenho em casos de afantasia surgem de formas diferentes. A artista explica que suas telas são antecedidas de um pensamento verdadeiramente lógico: ideias que aparecem na mente como palavras e, por meio de referências e do estilo próprio de Rafaela, ganham vida.

 

Benefícios imaginativos

 

Uma autenticidade que pode ir além das nossas imaginações também é citada pelo neurologista Philipe Marques da Cunha. “A afantasia pode trazer benefícios imaginativos. Ao pintar uma paisagem, por exemplo, um pintor pode trazer elementos mais lúdicos e diferentes”, comenta o especialista.


Artistas com afantasia

 

Você sabia que alguns dos melhores animadores do mundo são afantásicos?

 

  • O ex-presidente dos estúdios de animação Pixar e Walt Disney Ed Catmull já relatou em entrevistas que tem “mente cega”. Entre seus feitos, Ed marcou a indústria de animação ao desenvolver um método para animar superfícies em 3D.

 

  • Ao fazer uma pesquisa com funcionários e outros colegas, ele descobriu que a condição também afetava alguns de seus animadores mais notáveis. Entre eles está Glen Keane, vencedor do Oscar, que criou o projeto original da princesa Ariel (A Pequena Sereia, 1989).

 

 * Estagiária sob supervisão da editora Ellen Cristie.