PRIMEIRA LEITURA

Leia trecho do novo livro de André de Leones

Escritor goiano afirma que "Meu passado nazista", o novo romance, "não tem nada de autoficção" e satiriza o "neofascismo nacional"

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André de Leones

Enfim, os rumos do trevo. Outro gole. Sinto o corpo relaxar. Goles curtos, saboreando a bebida. Cristian não voltou a chorar. Fecho os olhos. Conto até cem. Quando termino, estamos na rodovia, o trevo de Vianópolis ficando para trás. Rumo a Silvânia. Seu pai não devia ter uma Luger?, cogito insistir. Ele não acharia graça. E quem sou eu para falar? Olho para a frente, a faixa (não ultrapasse), o asfalto escuro e gasto, depois olho para o lado, a noite ao redor também escura e gasta. Tudo é gasto. Goiás: gasto. Noite: gasta. Mundo: uma panela de pressão gasta e cheia de pregos gastos, prestes a explodir e trucidar inúmeros cidadãos gastos. Luger.

Se eu conheço Cristian Sênior, ele talvez tenha, sim, uma Luger. O desgraçado tem dinheiro e interesse por esse tipo de coisa. Desgraçados com dinheiro e interesse por esse tipo de coisa compram pistolas Luger. Com interesse pelo nazismo, bem entendido. Nazistas. Nazistas em Goiás. Nazistas em toda parte. Nazistas na escola, nazistas na fila do banco, nazistas sentados às mesas dos botecos, nazistas no puteiro, comendo as putas (que também são nazistas) (nem todas, pelo amor de). Nazistas engolindo hóstias. Nazistas querendo matar as namoradas (nazistas) e os fodedores (nazistas) das namoradas (nazistas). (Eleonora não é nazista.) Meu avô: nazista. Margarete e Magda? Nazistonas. Carol: nazistinha. Beth: gaúcha nazista.

Diógenes? Não saberia dizer, mas (aposto) nazista. Nazistas brotando do chão. Agricultores nazistas, freiras nazistas, padres nazistas. A soja daqui é nazista. Plantio, colheita: práticas nazistas. Tratores nazistas. Agrimensores nazistas. Veterinários nazistas. Peões nazistas. Pastores e fiéis: nazistas. Kardecistas nazistas (kardezistas). Pombos nazistas nos telhados, arrulhando nazismos e transmitindo doenças nazistas. Carteiros nazistas trazendo correspondências nazistas. Cristian Sênior e Cristian Júnior: nazistas. Cristina (respectivamente filha e irmã dos precedentes): vereadora nazista (talvez não) (Cristina é legal). Prefeito e vice-prefeito nazistinhas.

Pecuaristas? Nazistas. Gado leiteiro nazista. Açougueiros nazistas. Frangos nazistas cacarejando nazismos em granjas nazistas. Torneiro mecânico nazista, vigias nazistas, churrasqueiros nazistas, bancários nazistas, relojoeiros nazistas, juiz e promotor nazistas, oficial de justiça nazista. Taxistas nazistões. Tabeliões nazistas. Escrivão de polícia? Nazista. Carroceiros nazistas. Delegado nazista. Cavalos nazistas. Sacristão nazista. Farmacêutico (meu avô) (reitero): NAZISTAÇO. Nazistas em toda parte. Goiás: naziestado. Chega. Abro os olhos: agora quem já ficou para trás é a estátua do Cristo Redentor, engolida pela noite (nazista) (e gasta). Sim, voltamos a Silvânia. Voltamos para Silvânia e Gianciotto Malatesta não matou ninguém. Vitória do povo de.

Mais um gole. Que susto desgraçado, hein, seu filho de uma. Outro gole. Olho para Cristian. Aquela vontade de acotovelá-lo. Não. Seria pouco. Preciso pensar em algo pior. Em algo melhor. Passamos pelo Ginásio Anchieta. A pista se duplica alguns metros à frente. Ele entra na contramão e dobra à esquerda, depois à direita. Não sei em que está pensando.

Talvez queira dar um tempo. Não quero, não vou perguntar. Estaciona o carro no meio do nada, terrenos baldios e escuridão, abaixa o vidro e coloca a cabeça momentaneamente para fora, como se precisasse de oxigênio. Olho ao redor. Poeira, cascalho. Que não diga nada. Olho para a frente. Rua mal iluminada (outra) alguns metros adiante. Que não me encha mais o saco. As luzes fracas dos postes. Que permaneça em silêncio. (...)


Sobre o autor e o livro

Nascido em Goiânia em 1980 e radicado em São Paulo, André de Leones é autor de romances como “Vento de queimada”, “Eufrates” (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura), “Abaixo do paraíso”, “Terra de casas vazias” e “Hoje está um dia morto” (vencedor do Prêmio Sesc de Literatura.

O autor conta a origem do recém-lançado “Meu passado nazista” (Record): “É difícil precisar o momento em que um livro começa a tomar forma na minha cabeça. Sei que o título ‘Meu passado nazista’ me ocorreu em 2018, quando publiquei na minha página pessoal um texto memorialístico. Cresci no interior de Goiás e convivi desde sempre com os preconceitos, fundamentalismos e estultices que chegaram ao paroxismo com a ascensão do bolsonarismo.

Ou seja, essa boçalidade não era nova para mim. Em 2021, quando terminei de escrever ‘Vento de queimada’, senti necessidade de abordar isso de alguma forma. Logo percebi que o tom satírico seria o mais indicado, pois nada é mais chato do que um livro sisudo sobre esse tipo de coisa. Assim, criei um narrador pouco confiável (como todo narrador que se preze) e sacana, que devassa o próprio passado e o passado da família em meio a digressões de todo tipo, idas e vindas, saltos e mergulhos.

É importante ressaltar que ‘Meu passado nazista’ não tem nada de autoficção (não tenho ascendência alemã como o protagonista, para começo de conversa), mas apresenta alguns expedientes metaficcionais: há um romance dentro do romance, histórias dentro de histórias. Com isso, ao mesmo tempo em que satiriza o neofascismo nacional, ‘Meu passado nazista’ procura alegremente reafirmar a importância e a beleza da imaginação literária.”


“Meu passado nazista”
• De André de Leones
• Record
• 362 páginas
• R$ 89,90

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