"Os filhos da coruja": pintura de Gustavo Magalhães - edição de 2024 - selo Baião (Todavia)

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Graça Ramos*

Especial para o EM

 

A novidade da entrada em domínio público da obra de Graciliano Ramos, o lançamento do inédito “Os filhos da coruja”, demonstra que desde cedo marcas da linguagem do autor já se faziam presentes. Assinado com o pseudônimo J. Calisto, datado de 1923, o texto aponta para a linguagem agreste característica dos seus romances e contos e apresenta traços da paisagem física e social nordestina, alimento substancial da obra do escritor, que só publicou seu primeiro livro, “Caétes”, em 1933.


Lançado pelo selo Baião da editora Todavia, destinado ao mercado infantojuvenil, o livro traz outro importante indicador: considerado um autor da segunda geração de modernistas, Graciliano já estava sintonizado com discursos alardeados na primeira fase do movimento de 1922. O diálogo entre a Coruja e o Gavião aparece sob a forma poema de versos livres, em diálogo composto de rimas. As aves fazem um pacto de não agressão, descumprido pelo personagem masculino, esfomeado, dono de “apetite terrível”.


O texto inspirou-se na fábula recolhida por La Fontaine, “A águia e o mocho”, publicada no distante 1668. Já havia sido reescrita por Monteiro Lobato, com o título invertido “A coruja e a águia”, também sob a forma de diálogo, mas sem rimas ou vestígios de paisagem brasileira.


Graciliano optou por trabalhar com interjeições típicas de sua região natal (“se visse”, “se disse”, “valeu”) e escolheu um gavião, personagem constante nos céus e cordéis nordestinos. Também alterou o título, dando protagonismo aos filhos da coruja. Estava viúvo, cuidando de quatro filhos, três deles meninos, e a condição pode ter influenciado a mudança.

 


A terceira questão colocada, agora pela edição, é a já usual demonstração de que tecidos do passado podem ser atualizados graças aos trabalhos de design e ilustração. O livro está impresso em formato horizontal. Aberto tem quase 60cm, prancha livre para as hiper dimensionadas pinturas do jovem artista paranaense Gustavo Magalhães reinarem sozinhas nas páginas, em dicção que reforça a agressividade do Gavião.


As 18 pinturas concentram-se em cenas e recortes das duas aves sobre o fundo azul do céu; quando se voltam ao terreno, exibem tom verde distante das cores típicas do agreste tão caro a Graciliano. De repente, o Gavião não especificado no poema ganha as cores do temível – e quiçá mitológico para os nordestinos – carcará. Tem penachos pretos e a região do bico, chamada de cera, alaranjada e salpicada de pontos vermelhos, se torna brilhosa, indício de espreita, de que algo está para ocorrer. O artista apenas insinua a cena da devoração dos “lindos como uns amores” filhos da coruja, que o Gavião acha “feios como os pecados”.


As ilustrações narram a fábula em sequenciamento literal, por um triz o texto não se torna prescindível. Este aparece apenas no meio do livro, em pequeno caderno grampeado, pouco maior que uma página de A4 dobrada, em cor aproximada aos laranjas da caatinga. A diagramação provoca efeito de espelhamento, a indicar que o autor trabalhou a forma. Inseriu, inclusive, traços separadores do que pode ser lido como apresentação, conflito, moral da história, estrutura típica das fábulas.

 

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Organizada por Thiago Mio Salla, especialista na obra de Graciliano, a publicação obedeceu ao manuscrito. Fidelidade necessária a esse primeiro momento. Mas, em edições subsequentes, penso que algumas frases poderão vir a ser adaptadas. Raras pessoas jovens gostarão do uso de contrações praticamente fossilizadas, a exemplo de “não mos coma”.


Texto possibilitador de tantas leituras, por que Graciliano não publicou em vida “Os filhos da coruja”? Sabemos de sua afeição às infâncias, pois “Alexandre e outros heróis” – publicado postumamente, em 1962 – é das mais belas narrativas endereçadas a esse público. Segundo familiares, ele teria determinado que materiais assinados sob pseudônimo não fossem publicados. Agora, passados 70 anos de sua morte, toda a obra, inclusive inéditos, pode ser publicada sem autorização de herdeira(o)s.

 

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Aqui outras perguntas podem ser feitas: conhecendo a lei, se não queria que fosse publicado, por que preservou o manuscrito e por que ele foi doado pela viúva Heloisa Ramos ao Instituto de Estudos Brasileiros (USP), de onde veio a público? Pode-se conjecturar que um desejo inconsciente de publicação manteve o texto longe da lata de lixo.


A discussão tem outros vieses. A partir de agora, só editoras se beneficiarão economicamente com a publicação das obras do consagrado escritor; muitas vezes essa liberdade traz como consequência a publicação de edições horrendas, pouco atentas ao original. Talvez a entrada em domínio público devesse ser acompanhada de uma regra que obrigasse às editoras a destinarem um percentual a alguma instituição especializada na obra do autor, capaz de cotejar edições. Seria forma de fortalecer o domínio público.

 

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Voltemos à resistência do autor em publicar “Os filhos da coruja”. Rigoroso e autocrítico, incansável na busca da medida cortante, Graciliano deve ter considerado o poema fabular – experiência rarefeita em sua trajetória – distante das características impregnadas a sua obra.

 

Quem sabe a autocensura reprovou a composição das rimas? Tecnicamente, são pobres. Foram construídas com palavras da mesma classe gramatical: dia/pia; gentil/ vil; comível/ terrível; arredores/amores; feia/alheia. Essa facilidade, reivindicativa da expressão oral tão comum ao falar dos nordestinos, pode tê-lo levado a não se autorizar poeta. Analisadas bem depois de escritas, as rimas na conversa entre a mamãe Coruja e o compadre Gavião dotam a fábula de concretude rara para texto tão longevo. E expõem o duelo de um de nossos mais respeitados prosadores com as garras da poesia.

 

* Jornalista e doutora em História da Arte, é autora de “O apagamento de Volpi: presença em Brasília” (Tema editorial)