A escritora colombiana Margarita García Robayo -  (crédito: Editora Moinhos/Divulgação)

A escritora colombiana Margarita García Robayo

crédito: Editora Moinhos/Divulgação

“As pessoas me perguntavam: o que você quer ser quando crescer? E eu dizia: estrangeira”. A frase sinaliza a postura da jovem narradora de “Até que passe um furacão”, de Margarita García Robayo. Primeira obra da autora colombiana a circular por aqui, a novela foi publicada em 2012 e reunida posteriormente a outras duas narrativas breves, lançadas sob o título “El sonido de las olas”, inédito no Brasil. Em comum, o protagonismo feminino de personagens marcadas pela sensação de deslocamento. Tudo de frente para o mar caribenho, paisagem de grande beleza e enorme desigualdade social.


Em “Até que passe um furacão”, encerrados em um paraíso em que o luxo é para poucos, os personagens irão se defrontar com a vontade de partir em busca de outra vida, que parece sempre estar do outro lado do oceano. O mar, instância ambivalente, dá início e fim ao relato. Ele surge como espaço de projeção de desejos para aquela “gente sem salvação” e também cenário em que o som das ondas funciona como uma espécie de hipnose, anestesiando pulsões. Afinal, viver no Éden não é garantia de nada. Para muitos, ele pode ser apenas um lugar de mofo, podridão e miséria.

 

 

“Eu gostava do som das ondas. Aquele som tinha um nome. Tinha vários: há trinta e três maneiras de nomear o som das ondas, meu pai me dissera uma vez, enquanto dirigia. Mas depois não continuou, se distraiu olhando para o mar e eu não quis perturbá-lo”, afirma a narradora. A passagem é bastante reveladora da atmosfera geral da novela, em que a economia dos meios redunda em uma sensação de leitura vertiginosa. O pai não se pronuncia sobre o barulho das águas, assim como permanecem não enunciadas outras questões fundamentais. Não ver, não saber e não sentir são possíveis saídas para encarar a dureza dos dias.


Isso não se aplica à protagonista, atenta a todas as palavras e dona de uma lucidez quase insuportável diante das perspectivas pouco animadoras de sua existência. Nunca nomeada, a jovem articula um discurso afiado - por vezes racista e preconceituoso - assim como muitos outros personagens ao redor. Robayo não teme plasmar criaturas desagradáveis ou amorais, dispostas a quase tudo no afã de consumir mais e melhor, matar o tédio e abandonar a precariedade de um lugar em que a lama brota por todo lado. Se houver um green card no final da curva, tanto melhor.


Não à toa, a narradora se delicia com o ruído das ondas e dos aviões. Ao terminar a escola, começa a cursar Direito, mas cedo abandona os estudos e a família em busca de uma rota de fuga. E vira comissária de bordo de uma pequena companhia local. No plano amoroso, relações aqui e ali se dão em função de interesse, já que a ilusão do amor romântico sequer existiu e o afeto surge sob a forma de alguns espasmos de ternura.

 

Essa característica vale para muitos dos que a cercam, todos nadando contra a correnteza - ou esperando o furacão. Uma paisagem em que inexistem boas moças, mas pessoas de carne e osso em busca de algo a mais. Tais traços impedem uma leitura moralizante desse relato, povoado por “gente em meio a um colapso interno”, nas palavras da jornalista argentina Leila Guerriero.


Nesse sentido é paradigmática a cena em que, aos doze anos incompletos, a narradora vai comprar peixes na companhia do pai no barraco de Gustavo, estrangeiro de origem incerta que vive do pequeno comércio. Pouco atento ao que faz (e diz) a criança, o pai ignora o abuso sexual sofrido pela filha. Narrado pela vítima de forma crua muitos anos depois, o episódio irá determinar seu relacionamento ambíguo com esse homem - viajante, fabulador de mão cheia, um mentiroso contumaz que preenche o tempo vazio com histórias nunca contadas da mesma forma. O ponto final na inocência dá início a uma relação intermitente entre ele e a menina, em um tipo de afeto precário enlaçando essas duas pessoas à deriva. O texto deixa um travo amargo na boca, sem oferecer nenhuma solução apaziguante diante da assimetria desse convívio.


De modo frequente, sexo e boa companhia parecem ser uma forma razoável de proximidade. Como no momento em que o pedido de casamento do namorado Toño é recusado: “Pensei em abrir a janela e gritar para ele subir. Pensei em abrir a janela e gritar que sim. Mas o que eu fiz foi acender um cigarro e, sem parar de olhar, imaginar minha vida com ele”. O que se segue é um parágrafo brilhante, antevendo a vida futura falhada: “Cheiro de fritura, cheiro de rum, cheiro de pântano podre, cheiro de pobre”.


Constantes voos com destino a Miami vão comprovando outra rotina, regada a lagosta e champanhe na companhia de amantes ocasionais. Esse sonho americano em miniatura inclui comprar presentes mais baratos no Natal, eletrodomésticos em profusão e uma geladeira transbordando de comida, a exemplo da casa do irmão, que conseguiu fugir do país natal ao se casar com uma porto-riquenha, moradora de Los Angeles.


A distância também marca a trajetória de Robayo, nascida em Cartagena, em 1980, mas há quase duas décadas radicada em Buenos Aires. No Brasil, mais de uma dezena de suas histórias - todas em primeira pessoa - foram publicadas no site da revista piauí entre 2013 e 2019, uma boa oportunidade de circular pelas frases certeiras da autora. “Rompante de loucura”, construída em torno da figura materna, é exemplo dessa prosa pautada pelo humor e pela melancolia. Robayo faz uso de procedimentos narrativos que desembocam em uma dicção muito própria, com destaque para a construção de diálogos construídos de forma primorosa. Reconhecida por essa capacidade, recebeu o Prêmio Casa de las Américas pelo volume de contos “Coisas piores”, publicado em 2016 e traduzido no Brasil pela editora Moinhos.


“Até que passe um furacão”, em ótima tradução de Silvia Massimini Felix, estreou por aqui sem alarde, o que em nada diminui o impacto da chegada. Afinal, um furacão acontece quando a água oceânica evapora, o líquido se transforma em vapor, e, sob alta pressão atmosférica, retorna na forma de tempestade, arrastando o que estiver pela frente. A imagem violenta do fenômeno é adequada para designar esse texto compacto de 62 páginas, em que Robayo revela a força de uma escrita única. Para os leitores brasileiros, a tempestade tropical trazida por essa prosa é mais do que bem-vinda.

 

*Stefania Chiarelli é professora adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de livros como “Partilhar a língua” (7Letras)

 

“Até que passe um furacão”

De Margarita García Robayo
Tradução de Silvia Massimini Félix
Moinhos
64 páginas
R$ 50